Autor: Herman Melville
Editora: José Olympio, 2017
Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos
Páginas: 95
Jorge Luís Borges, ao falar de Bartleby, nos traz de volta a reflexão de Chesterton sobre o ateísmo, ao afirmar que Melville cria em Moby Dick um “labirinto sem centro”. Aponta também que a grande diferença de Bartleby para Moby Dick é o “idioma tranquilo e até jocoso”, que nos remete a escrita de Kafka em suas imensas perseguições – e perseguidos – sem o ponto chave do encontro, o fim. A erudição de Borges, como sempre, não chega a espantar, mas os rastros que estas breves frases nos deixam pode nos propiciar uma série de chaves para a análise de uma figura tão enigmática como este Bartleby.
Gilles Deleuze e Felix Guatarri dedicam toda uma obra à literatura de Kafka e a intitula de Kafka por uma Literatura Menor. Nela, os autores destacam que o que faz Kafka é produzir em suas obras uma língua dentro da língua, uma espécie de idioma minoritário, uma voz que, na língua de Barthes, faz a linha oficial rumorejar em seus balbucios. Ela não apresenta um mundo, mas se apresenta como mundo, se tornando a materialidade disto que Borges aponta como um “idioma tranquilo”. Ora, ao chegar em Melville e a língua romântica de Ahab, ao lado do caos da animalidade de Moby Dick, vemos o Bartleby como uma espécie de literatura menor. A narrativa parece estéril, celibatária, ela não escapa de seu próprio centro – sem centro – e seu labirinto se torna um mantra repetido a exaustão: prefiro não.
Ao adentrarmos o universo de Bartleby estamos diante de que? A história de Bartleby, o Escrivão, é uma das mais instigantes da literatura mundial. Herman Melville escreve a narrativa deste homem que, de um dia para outro, resolve preferir não e se recusa a atender os pedidos de seu patrão. Sentado em sua escrivaninha, ele decide não mais copiar, decide não mais trabalhar, decide não sair de seu lugar e, assim, de preferência em preferência, coloca seu patrão, seus funcionários e todas as demais instituições em um impasse: em um espaço de in-ação total, sua recusa a fornecer à máquina de poder sua contribuição e acaba por desmontar as forças tal como elas se posicionam, deixando um rastro, um legado de negativas que configuram a composição de um outro mundo.
Neste sentido, é importante ressaltar que Bartleby não impõe uma recusa. Seu gesto não é de força, ele não se nega a copiar, ele não se contrapõe às necessidades e às ordens do patrão. Seu gesto é de preferência, ele “prefere não fazê-lo”, como quem agradece a quem pediu, mas se garante o direito de não fazer. O interessante é que este gesto, singelo, se torna, para a grande roda do mundo, uma violência:
A verdade é que sua extrema mansidão não apenas nos desamava, mas também me intimidava. Pois considero uma covardia que alguém permita tranquilamente que um empregado lhe dê ordens e que o expulse de seu próprio escritório.
Nesta breve resenha, quero chamar atenção para apenas um ponto: a questão do lugar. Bartleby não é um sujeito sem mundo, sua capacidade de imaginação é imensa simplesmente por vislumbrar preferir não fazer coisas – o que a maioria imagina, só que sem ação (imagina-ação) -, o ponto que me parece importante é que este tipo de força, de coragem se coloca como uma espécie de u-topos, uma utopia, um espaço sem lugar. Assim, Bartleby não é capaz de habitar o mundo como tal e parece não ver neste uma saída. “Estrangeiro aqui como em qualquer parte”, como escrevia Pessoa, talvez seja uma marca dos Bartlebys. Entretanto, seu gesto silencioso, animalesco, violento, nos mostra que seu mundo, ao que tudo indica, não era este:
Não fui eu quem o trouxe para cá, Bartleby – declarei, consternado com sua suspeita – E este lugar não deve ser tão infame para você. A sua presença aqui não é relacionada com qualquer ato censurável. E não é um lugar tão triste como se poderia imaginar. Aqui tem céu e tem relva.