Autor: Raduan Nassar
Editora: Companhia das Letras, 2014
Páginas: 200
O tempo é pesado. Ele cobre nosso corpo com seus acúmulos e dispõe sua força histórica a serviço de uma tarefa árdua responsável pela manutenção daquilo que ele próprio propõe. Se o tempo passa e na passagem o que fica é aquilo que se repete, o tempo é um eterno repetidor que, ao compor uma tradição nos obriga a pensar e viver sob esses termos: ou seguir ou romper. Nossos corpos, então, estão intimamente determinados por essa duplicidade. Estamos diante de mais um desequilíbrio trágico que precisa se dissolver, se resolver, mas só consegue encontrar a própria destruição.
Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, é sobre uma família tradicional, arcaica, patriarcal, centralizada na figura deste homem moral chamado “pai”. André, um de seus filhos, de ímpeto voraz, de corpo inconformado e desejo desenfreado e pulsante, vê na figura de sua irmã Ana, o despertar de todo esse desejo e, por conseguinte, o rompimento da ordem estabelecida por aquela tradição. Num ímpeto André permite vôos a seu corpo e foge para longe de casa. Como na narrativa do filho pródigo, é resgatado por seu irmão Pedro. Ao retornar, no entanto, André percebe o fio que se rompeu e o desequilíbrio trágico que não pode se restabelecer.
As principais leituras da obra são armadas na ideia binária de liberdade x tradição. Em que o pai representa aquilo que deve ser mantido, enquanto o filho aponta para as muitas possibilidades de uma vida. No entanto, prefiro armar a obra a partir de outros critérios. Observo em Lavoura Arcaicaum complexo jogo entre o corpo de André, lançado aos seus desejos vetados por uma moral, e aquilo que esta moral precisa reproduzir. De caráter bíblico, todo caráter apontado pelo o pai, a partir da ideia de dignificação via trabalho, ordem e lei, é de que o corpo deve se docilizar humildemente frente aos ímpetos do mundo. Nesse sentido, a vida em família é aquela em que agrega forças para um objetivo comum: o pão de cada dia, a preservação.
Acontece que este corpo de André não pode se conformar com esta maquinaria de produzir homens. O seu corpo, de uma violência animal, de pulsação de cada fibra, não percebe esses valores do pai como morais, mas como gestos imorais contra esse corpo. Ir de encontro ao desejo, para ele, é a maior das imoralidades e, portanto, aquilo que para ele é “humano” é tenebroso, pois é um consenso entre o mundo e a razão, excluindo o desejo da equação. É por conta disso que ele não consegue deixar de ser ver como um pária, alguém da tradição dos malditos, como Caim ou o Filho Pródigo:
Pertenço como nunca desde agora a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranquilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim.
Justamente por isso, mesmo ao retornar a casa e conversar com seu pai, ele é incapaz de perceber a ordem das coisas do mundo, nem quando apontada pelo carinho exposto do pai:
Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo o que falo.
E emenda:
Não, pai, não blasfemava, pela primeira vez na vida eu falava com um santo.
O interessante está no fato de que este rompimento de André com os laços da moral e da tradição, acabam por santifica-lo, tal como, talvez, como Francisco de Assis ao retirar as vestes e sair nu pela cidade. Lavoura Arcaica é a obra desde corpo que não toma posse de si, mas se entrega a uma não conformação que tinge o mundo de uma coloração misteriosa e nebulosa.
Postado originalmente no Indique um Livro