Autor: Jacques Fux
Editora: Perspectiva, 2016
Páginas: 256
Quando se pensa na relação entre literatura e matemática, em geral, o que se vê são uma série de generalizações e equívocos que aparecem na gênese da questão e que não conseguem dar conta sequer de perguntas simples que dariam um norte apropriado para que se aprofunde o pensamento. Jacques Fux, em seu último trabalho, tenta desmontar esse nó. Para adentrarmos sua obra, no entanto, abrimos espaço para traçar alguns ponto alguns eixos que são interessantes para, em princípio, abrir os horizontes para nossa reflexão.
Primeiro, é preciso pensar que a divisão entre literatura e matemática é de caráter meramente epistemológico. O saber literário e o saber matemático distanciaram-se porque assim foi feito historicamente e, caso não tivéssemos transcorrido para uma gradual separação das áreas, é possível que ambas caminhassem juntas até hoje, como ciências irmãs. Levamos em conta que, evidentemente, para a maioria da população, literatura é do campo das humanas, das artes e da estética, enquanto a matemática é do eixo das exatas, e que não é comum que se pense nas fronteiras que ambas dividem e compartilham, assim como também outros campos de pensamento limiares, como a filosofia, em que as duas bebem da fonte.
É partindo desse ponto que nos aproximamos de Literatura e Matemática, de Jacques Fux. É interessante, para começar, pensar na passagem de Fux: graduado em Matemática, mestre em Ciência da Computação e doutor Literatura. E como se verá, a relação entre literatura e matemática será mais orgânica do que a academia poderia prever.
Literatura e Matemática é um livro que busca investigar as relações da matemática e da literatura a partir do pensamento de alguns grupos e autores. Fux se concentra, basicamente, na figura de dois autores: Georges Perec e Jorge Luis Borges, passando pelo grupo do Oulipo, do qual Perec fez parte, mas sem com isso deixar de apontar para diversos autores de nossa história da literatura como Osman Lins, Poe, Lewis Carroll, Dom Quixote, Italo Calvino, Franz Kafka, entre outros.
No primeiro capítulo, Fux explora a relação entre matemática e literatura propriamente dita, passando pelos autores listados acima, mas se focando principalmente no Oulipo, grupo francês presidido por Emmanuel Clancier e Jean Lescure, que buscava utilizar as regras e fórmulas matemáticas para criar “obstáculos” para as criações literárias. Estas regras, chamadas por eles de Contrainte, serviam como espécie de alicerce ou arcabouço para suas criações. Acreditava-se que, tendo impostos limites, a imaginação obrigava aos autores a buscar novas saídas, como num labirinto, e assim propor novas formas de criação para a escrita literária, como também a possibilidade das regras da matemática sendo utilizadas em outros contextos. Para eles, no entanto, tratava-se também de um grupo:
“ludicamente sério ou seriamente lúdico”
A ideia de jogo, ou seja, de um limite a se transpor como algo lúdico, quase pueril, revelava, ao fim, que os hipertextos, ou seja, um texto que está sempre a ser acompanhado por outro, poderiam impor a mesma ou uma maior “Liberdade” na criação. Calvino dizia:
“Esta é a novidade que se encontra na ideia de multiplicidade “potencial” implícita na proposta da literatura que venha a nascer das limitações que ela mesma escolhe e se impõe.”
Entretanto, o princípio inicial, pode se dizer, era menos arbitrário do que parece. Afinal, eles criam que:
“todo texto é regido por regras, sejam elas conhecidas ou não por seu autor, sejam elas contraentes explícitas ou inerentes à própria linguagem”.
Nos capítulos seguintes, Fux vai se ater a analisar a obra de Perec a luz de Borges e posteriormente a obra de Borges a luz de Perec. Sobre Perec a grande referência é a obra A Vida Modo de Usar, mas também Coisas e O Sumiço, em que todo o livro é escrito sem a letra E. De Borges, temos obras clássicas como Ficções e textos já consagrados como Pierre Menard, O Jardim das Veredas que se Bifurcam e A Biblioteca de Babel. Estas análises, que adentram a matemática das obras propriamente ditas, podem se tornar obscuras em alguns pontos para quem não tem conhecimento básico da área, mas mantém, a todo momento, o rigor de não hierarquizar em nenhum momento uma instância ou outra: literatura não se submete a matemática nem vice versa.
O livro, repleto de trechos de obras e fórmulas matemáticas, nos mostram como os campos de pensamento se cruzam como vetores de uma mesma equação e que, provavelmente, mais estudos não existam na área justamente pela dificuldade de se encontrar alguém que se aventure a adentrar ambos os caminhos concomitantemente. As fórmulas, como livros, viram imaginação. Os livros, como fórmulas, viram ilustrações dignas de Alice no País das Maravilhas.
Literatura e Matemática, de Jacques Fux, é um trabalho técnico e teórico de extremo folego e rigor. É capaz de olhar a matemática como parceira e não como fronteira intransponível como pensa o senso comum, assim como perceber que, no fundo, toda literatura nasce matemática naquilo que ambas tem de essencial: o pensamento como potência. A imaginação não deve estar apenas na literatura, assim como o rigor da ciência não precisa ser matemático. Ambas as áreas, no fundo, encantam a quem resolve a elas se dedicar e, muitas vezes, apenas um trabalho como o de Fux pode nos fazer olhar para essa escuridão do nosso pensamento.