O Estatuto do Idoso é uma lei brasileira que assegura os direitos fundamentais às pessoas com 60 anos ou mais, em condições de liberdade e dignidade. No Brasil de O Último Azul, entretanto, muitas dessas garantias são negadas aos cidadãos que avançam à extrema idade: aos 75 anos, são compulsoriamente retirados da vida em sociedade e enviados a uma colônia.
Sob o discurso de agradecimento pelo tempo dedicado à nação, esse governo fundamenta sua premissa na oferta de um suposto descanso merecido aos idosos, visando aumentar a produtividade das gerações mais jovens.
A esta iniciativa todos os idosos prestam obediência cega, exceto Tereza, senhora de 77 anos que, de uma certa perspectiva, apresenta semelhanças de caráter com a personagem da mulher do médico, de Ensaio Sobre a Cegueira (1995), de José Saramago. Assim como aquela não foi acometida pela misteriosa perda de visão que castigou toda a cidade, esta não se deixou vencer pela inércia como seus conterrâneos de mesma idade.
Tereza faz um desvio, não vai para a colônia e decide fazer a própria vontade, não a do Estado.

Essa sociedade distópica tem lugar em um universo fora do comum, onde a protagonista se aventura para viver, à sua maneira, os seus cem anos ou mais de solidão. Esta é uma Macondo amazônica, de natureza exótica, atravessada por rios tortuosos que são a metáfora perfeita do caminho que Tereza escolhe.
Nessa Amazônia delirante e lírica, como descrita pelo diretor e roteirista do filme, Gabriel Mascaro, Tereza não tem autonomia sequer para comprar um açaí ou exibir livremente a cabeleira branca. Mesmo assim, quer realizar o sonho de voar em um avião, para isso, precisa contar com os bons presságios de pessoas que encontra ao longo da jornada.
Esses encontros situam definitivamente a obra no realismo mágico; cada um dá origem a um capítulo em que Tereza aprende algo novo e conhece algum animal exótico que revela e fundamenta a simbologia única do filme. O primeiro desses episódios é com o personagem de Rodrigo Santoro, que abrilhanta o elenco protagonizado por Denise Weinberg e que conta, inclusive, com uma atriz cubana, Miriam Socarrás, que veio ao Brasil exclusivamente para gravar o longa de Mascaro.
O diretor pernambucano revela que o processo de seleção para as personagens mais velhas não foi simples. Ele buscava atrizes que apreciassem a naturalidade do tempo em sua aparência, mas a indústria não favorece essa relação saudável com a verdadeira idade, especialmente às mulheres. Por isso, cada vez mais temos artistas que buscam parecer muito mais jovens.
Nesse contexto, a escolha de Weinberg e Socarrás revela-se ainda mais precisa para viverem mulheres maduras que mostram que a idade não é obstáculo para novas descobertas, amizades, experiências, estilos de vida ou para reconhecer a real beleza dos próprios corpos.

Um grande mérito de O Último Azul é contar uma história diferente das que são usualmente escritas para protagonistas de idade avançada. Nesses enredos, geralmente a narrativa é sobre memória ou a falta dela, tal qual filmes como Amor (2012, Michael Haneke) e Meu Pai (2021, Florian Zeller).
É inovador acompanhar uma personagem de quase 80 anos sem que prevaleçam as habituais sensações de perda, compaixão e despedida. Pelo contrário, o roteiro de Mascaro, assinado também por Tibério Azul, oferece momentos em que, inclusive, questionamos o caráter da personagem principal, desafiando as expectativas convencionais sobre envelhecimento associado à razão e ao discernimento.
Gabriel Mascaro, recifense de 42 anos, integra uma vertente de cineastas nordestinos que não “precisou descer para o Sudeste” para fazer cinema de grande impacto. Há, inclusive, certa afeição estética em comum entre ele e nomes como Karim Aïnouz e Guto Parente, ambos diretores cearenses que também mostram apreço pelo fantástico em seus lançamentos dos últimos anos, Motel Destino (2024) e Estranho Caminho (2023), respectivamente.
Vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, O Último Azul é, sem dúvidas, um ensaio sobre a velhice que constrói uma poética singular ao tratar não das limitações, mas das belezas e vontades que permanecem vivas, não obstante a idade.
Minha nota para O Último Azul no Letterboxd: 4 estrelas e meia.
O Último Azul (2025)
Direção: Gabriel Mascaro
Roteiro: Gabriel Mascaro e Tibério Azul
Duração: 1h 27min.

