O livro As sementes que o fogo germina, escrito por Sumaya Lima e publicado pela Editora Mondru neste ano de 2024, é composto de uma série de contos que, cada um à sua maneira, tratam de assuntos velados, difíceis e até considerados tabus, mas de forma direta e crua. São quase 30 contos que perpassam o horror e o desejo de maneira entrelaçada, muitos deles terminando sem desfecho e mantendo seu fim em suspenso, criando uma atmosfera incerta que nos deixa a pergunta: isso é real?
Nas narrativas, o desencadear das histórias mistura sensações e desperta sentimentos mistos no leitor, e às vezes até confusos. Estamos falando aqui de mergulhar no profundo dos sentimentos mais ordinários e cotidianos, e extrair de lá o absurdismo que nos resume. Porém, ao mesmo tempo, a escritora traça um grande catálogo de situações violentas e incomuns em textos que se debruçam sobre família, relacionamento e o ato da escrita. Além disso, os contos também fornecem reflexões sobre a morte, a violência, a enfermidade e os transtornos mentais, e até a própria desconfiança em nós mesmos.
O conto que abre a obra, “A imitação do amor”, é um diálogo em que só temos contato com uma parte, como se o outro personagem fosse, para nós, leitores, mudo. A história parece um grande discurso, com teor de desabafo, de uma mulher que se casou por conveniência e agora vai ao encontro do marido em uma outra cidade, talvez em outro país.
Agora estou partindo, e na verdade sinto como se retornasse ao meu lugar após um longo combate em terra estranha. Saio a coxear, claro, já sem os mesmos contornos, as capacidades diminuídas, e Gregório virá também com suas marcas. Nesta altura da vida, já vamos muito alterados. Mas, para simular o amor, há sempre muitos meios.
A ideia de não sabermos ao certo com quem ela conversa faz com que toda a situação pareça inventada, irreal, como se todo o discurso de autoconfiança e de boa-vida fosse uma tentativa de convencimento performada em suas fantasias. Ao ser perguntada sobre o marido, ela opta por relembrar o passado com outro homem, Miguel, instrumento de uma aventura virtual que resultou no abandono. Essa situação, que aparenta ser inventada, exponencia-se em uma invenção propriamente vivida pela personagem, atormentada e descrente de que possa amar de novo.
O estranhamento na literatura
O que Sumaya Lima faz em muitos contos de As sementes que o fogo germina é partir de um princípio caro à crítica literária russa no começo do século 20: o estranhamento na literatura. Essa ideia compreende que a arte tem o papel de nos desfamiliarizar do que entendemos como real, da maneira como absorvemos o mundo. Desfamiliarizando-nos, fugindo do lugar comum através da arte e da linguagem artística, entra-se em uma perspectiva que somente o objeto estético-artístico permite.
No entanto, algo na escrita de Sumaya chama a atenção: o estranhamento não é somente estético, mas ético também. Ou seja, tem uma motivação moral, digamos assim. Não são somente as mortes, as violências ou as descrições nuas de uma realidade insólita que nos causam estranhamento, mas os fatores que motivaram certas ações que são raciocinados por nós, leitores; estranho é tudo aquilo que vai para além dos contos, que fura a bolha e permite abertura para pensarmos no lugar comum, no “normal”, diante do absurdo.
A dimensão fora do lugar-comum para a qual a autora nos transporta é, na verdade, mais comum do que se imagina, mas inaudita. Em suas construções narrativas, que de primeira parecem surrealistas, há, na verdade, um diálogo mental entre duas pessoas que buscam se entender e não se suportam; ou, ainda, o sentimento de impotência de uma criança que não sabe falar; ou ódio a um parceiro ou parceira, e até aos pais. Tudo isso é tão incomunicável que precisa ser dito dessa maneira estranha, que cutuca, que parece distante mas ao mesmo tempo assustadoramente próxima.
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Algo que me surpreendeu na obra foi notar que alguns contos se relacionam com o passar das páginas, promovendo novas perspectivas de um acontecimento, mas sempre brincando com nosso senso de realidade e do que é certo. É o caso do assassinato da professora aposentada Lurdes Medeiros, jogada ao mar por suas filhas e nora após ser amarrada ao escapamento de um carro no dia de seu aniversário, uma história logo apresentada no segundo conto e retomada em outros ao longo do livro.
Diante dessa história horripilante, Sumaya Lima traça em “Polaroide” uma descrição precisa, contendo nome e caracterização de cada envolvido com um distanciamento frio que causa arrepios. Nela, há a descrição da foto tirada da família minutos antes de a matriarca bater no braço de sua neta e lançar a câmera ao chão.
(…) à frente e ao centro, a matriarca e aniversariante Lurdes Medeiros, para onde convergiam todos os rostos sufocados pelo não dito.
Depois, o conto nos apresenta minuciosamente o ato de violência cometido.
Logo mais, entre um conto e outro, na história “A mosca da cabeça branca”, temos uma narrativa que adentra a casa da professora Lurdes e seu convívio familiar, abrindo o leque da crueldade para além do que antes havia sido dito: a visão animalizada que Lourdes mantinha de uma de suas filhas e a frieza com que tratava pessoas de seu convívio. E, por fim, a perspectiva cientifizada e repleta de teorias do caso Lurdes Medeiros, que, após ser jogada no mar, desaparece sem deixar vestígios, como se derretida pelo mar, no conto “Mar Pequeno”:
Na época, em coletiva de imprensa, os investigadores declararam que os acontecimentos escapavam à compreensão: “Além de pessoas da família, ouvimos depoimentos de vizinhos de longa data, antigos alunos e colegas professores. Perguntamos, entre outras coisas, se acaso teriam notado algum comportamento ou modo de falar da vítima que apontasse a possibilidade de seu corpo ser suscetível à quase imediata diluição quando em contato com a água salina. Infelizmente, não obtivemos sucesso”.
Primeiro, o redor de Lourdes Medeiros minuciosamente descrito, o cenário externo posto, o crime cometido e as pessoas nomeadas. Depois, o tema da situação, a tentativa de compreensão de motivações e o cenário interno traçado; o outro lado exposto, mas a dúvida mote de Sumaya Lima presente: isso é real? Por fim, um conto inteiro dedicado à incerteza e ao mistério do caso, às mais largas tentativas de compreensão. Todos esses traços se ligam, mas, claro, não se fecham entre si, e permitem, ainda, a dúvida no leitor e a abertura que a autora cria com maestria.
O não-dito inaudito
Já no conto “A palavra sem nome”, a atmosfera do indizível antes mencionada é totalmente estendida. Na história, um casal vive em distância completa, Amaina e Terebinto, preocupando-se com impossibilidades ou com o nada, sobrevoados pelo tédio e a solidão.
Os métodos seguiam os mesmos: homem e mulher, como se dois refugiados vindos de lados extremos do globo, escamoteavam-se pelos ocos da casa para a liberação irrestrita de suas estranhezas cotidianas.
Acontece que esse “casal” se encontrava somente aos almoços para manter a ideia de um matrimônio, de uma família, sem haver sequer um diálogo. No entanto, é em um desses almoços que Amaina sente que uma palavra não-dita estava prestes a sair, depois de meses, exigindo dela um esforço que resultaria em uma face em câimbra e seu corpo desfalecido. O marido, vendo tudo aquilo, nem chega a se surpreender.
Não é preciso falar, o homem pensou, nada se poderia ouvir acima daquele cimento moldado no silêncio de tantos anos. Mas a palavra não dita latejava no ar, ressoando ali como uma araponga insone, e Terebinto acompanhava, inerte, o desbotar do charme cor de folha seca dos olhos da mulher.
Horas se passam, o corpo da mulher continua ali. É então que o marido liga para a filha e diz que ela devia visitá-los logo, já que eles “se encontravam já frios e sólidos de tamanha saudade”. E assim o conto se encerra.
Em As sementes que o fogo germina, os fins das histórias são como cortes profundos e rápidos, lacanianos. Como quando um psicanalista termina a sessão no momento em que o paciente mais se entrega e diz o essencial – “essencial” no sentido daquilo que o consome e que o compõe internamente. Saímos de cada conto dando um suspiro, de alívio ou suplício. É agonizante e libertador.
Sumaya Lima implementa nos contos um discurso que nos transporta para a mente do personagem e nos ludibria a ponto de concordarmos com suas atitudes, mesmo que erradas e tortuosas, causando uma incerteza de juízo e quebra com o comum e o tradicional. Em “A palavra sem nome”, o ato de alguém morrer por não conseguir dizer uma palavra é surreal, mas, trazendo para realidade: quantos de nós não sentimos morrer um pouco toda vez que deixamos de dizer o que gostaríamos?
E não é somente esse conto que trata sobre o não-dito, muitos circulam por essa temática, como “Subterrâneos”, em que uma filha descobre verdades sobre seu pai e, após isso, reflete:
Por quanto tempo uma pessoa é capaz de andar na vida com verdades enterradas dentro de si?
E é esse transporte das páginas ao nosso imaginário, à nossa realidade, que torna os contos em As sementes que o fogo germina tão vívidos e infinitos. Cortázar uma vez disse, em um texto em que reflete sobre as características principais do conto, que a natureza concisa e afiada de sua especificidade confere ao tema uma viagem “do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana”. E é dessa maneira, permitindo aberturas do escrito para o de fato, vivido, que Sumaya Lima cria narrativas gigantes.