Assumo ter ficado desconfiado com os primeiros momentos de Pele de Vidro, documentário de Denise Zmekhol sobre o Edifício Wilton Paes de Almeida, ou o “Pele de Vidro”, como era chamado, devido à sua estrutura coberta inteiramente pelo material. O prédio, desenhado pelo pai da diretora, Roger Zmekhol, e construído nos anos 60, é posicionado como um símbolo de um Brasil otimista e de futuro promissor. Sua imagem no passado, de um prédio imponente e solar, contrasta com sua versão atual, ocupada por pessoas sem teto e sua antiga superfície cristalina agora está suja e coberta de pichações.
Essa oposição me deixou ressabiado. Afinal, não seria a primeira nem a última vez que um documentário brasileiro viria carregado de elitismo e egocentrismo disfarçado de preocupação social, mas logo minhas preocupações sumiram diante do que o documentário é de fato, um sensível e complexo encontro de uma filha com o legado de seu pai, que tomou diversas formas ao longo do tempo.
Pele de Vidro costura essa história familiar diante do contexto maior da luta por moradia na cidade de São Paulo, com Denise fazendo um gesto importante, não só para o filme em si, mas para o gênero documental como um todo, o de se abrir para o outro. Enquanto a diretora, que também narra o filme, conversa com outros arquitetos sobre a influência do seu pai e a concepção do Wilton Paes, ela busca entender melhor o movimento que ocupa o prédio, e se conecta com outros ativistas do movimento por moradia.
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Desse modo, o longa se utiliza do edifício como ponto de partida para analisar o Brasil passado, especialmente sobre o Golpe de 64, que também afetou o meio arquitetônico, perseguindo profissionais, e olhar para a nação do presente, onde a sombra da ditadura ainda é forte. Denise traça um paralelo direto entre a ascensão da extrema direita no Brasil com a intensificação da repressão à luta por habitação.
A princípio, a relação da diretora com os habitantes do prédio é distante, no sentido literal da palavra. A negociação com os organizadores da ocupação não vai para frente, e resta a Denise olhar, à distância, a vida dos moradores dentro da obra do seu pai. Uma distância real, mas que reforça também uma questão sentimental. Uma das memórias com o pai envolve uma briga que afastou os dois, nunca devidamente superada.
Se o Pele de Vidro está inacessível, a narrativa busca outros modos de entender uma ocupação, conversando com Welita Ribeiro e Péricles Santos, ambos ativistas do movimento por moradia e abordam um pouco das minúcias de uma ocupação. Há toda a estrutura logística do espaço, como a necessidade de reformas e questões orçamentárias, mas também a vida. O documentário tira um momento, mesmo que breve, para mostrar crianças brincando naquele espaço, uma mãe lavando a louça, essas atividades tão rotineiras, mas cuja prática é negada a diversos brasileiros.
A aproximação de Denise e a ocupação do Wilton Paes se dá a partir de uma tragédia. Em 2019, um incêndio de grandes proporções fez com que o prédio desabasse, deixando 7 mortos e mais de 200 famílias desabrigadas. Mesmo sem o Pele de Vidro, o Pele de Vidro continua, conversando com antigos moradores, que agora vivem em um acampamento. Esse momento promove uma espécie de reencontro de Denise com o legado do pai, examinando o que, afinal, o Wilton Paes representou para quem ali viveu, e as respostas são múltiplas. Vendo as fotos da época da construção do prédio, uma moradora aponta para uma escada: “essa escada salvou nossa vida”. Outra conta sobre as condições do prédio, que era precária por conta da má gestão dos organizadores da ocupação.
É comum a certos documentários modernos se colocarem como meros observadores de um evento, e o que destaca Pele de Vidro é o fato dele não ter medo de se colocar no mundo, especialmente nos seus momentos finais. Se antes Denise olhava de longe, agora ela está ali com os moradores, apertando suas mãos e recebendo seus abraços, retratando vidas que, de certa forma, também são o legado de seu pai.
Texto de cobertura do Festival do Rio 2024