Autor: Luís Capucho
Editora: É Selo de Língua
Páginas: 176
O corpo é sagrado. O corpo é segredo. A literatura de Luís Capucho sempre me coloca diante deste impasse: o que há no corpo que faz dele corpo? E isto, em sua obra, sempre se amplia recaindo diretamente na palavra. O que há nesta sincronia entre palavra e corpo que aponta para algo que é da ordem do mistério e, ao mesmo tempo, parece dizer sobre as coisas mais simples da vida, daquilo que é da vida pequena, reles, do cotidiano? A leitura de Diário da Piscina me colocou diante deste espanto, principalmente após ter lido todas as obras de Luís Capucho.
Diário da Piscina é o relato de um homem que, após sofrer alguma limitação física, se inscreve em uma academia de natação e começa todos os dias a praticar a atividade ao lado de uma série de pessoas. O livro, escrito em formato de diário, é a coleção dos dias deste sujeito que aponta para toda dinâmica de funcionamento da academia, do trânsito das pessoas e das dinâmicas entre os corpos que atravessam aquele espaço. Com o olhar silencioso de quem, ao nadar, é impedido de falar, esta figura cria uma espécie de mapa capaz de dar conta de toda subjetividade circunscrita neste microcosmos.
A primeira coisa que quero ressaltar é que todo diário é um relato íntimo. E isto, por si só é algo ambivalente: a intimidade é da ordem do segredo, não pode ser compartilhada, enquanto que o relato é a materialização de um testemunho que se mira em direção a outro. O diário, então, se coloca nesta zona entre o que foi dito e o que não foi dito, apontando para um tom parabólico ou alegórico, deixando sempre margem para a pergunta “o que será que ele quis dizer ao escrever isso?”. Ao mesmo tempo, em Capucho, a impressão que se tem, dada a maneira íntima e trivial com que as histórias são contadas, é que trata-se de uma história biográfica, ou seja, que aquilo que se passa com Claudio, a personagem do livro, havia se passado com a própria figura do autor. No entanto, pouco importa isto, muito embora as semelhanças existem. O importante aqui é ressaltar que existe em Diário da Piscina um exercício, e digo exercício porque o diário é uma prática de repetição, de narrativas breves em sucessão, de compor uma biografia expandida, aquilo que Lacan cunhou chamar de “êxtimo”, um “íntimo para fora”.
Ora, e o que há de mais íntimo em Capucho? O corpo.
Os mistérios do corpo e seus segredos, me parece, são a grande investida da arte de Capucho. Desde suas canções como “A Expressão da Boca”:
A expressão da boca define a pessoa
A expressão da boca conduz aos outros movimentos dela
A expressão da boca dá sentido para os olhos
A expressão da boca centraliza o sentimento
Ou Velha:
É tão bonita uma velha
A pele de cama usada
É tão gostosa, tão frágil
a mão de roupa ensaboada
e o sorriso de legumes.
Chegando até suas obras como Cinema Orly, um desfile pelos corpos secretos que passavam pelo cinema pornô do bairro da Cinelândia. Ali se viam corpos jovens, corpos de travestis, velhos enrustidos, a pessoa que vende balas, os michês, os gays-ativos, entre outros; Mamãe me Adora, uma viagem em sua própria história e na atenção do corpo que envelhecia da mãe; Rato, da descoberta de uma sexualidade através dos corpos que habitavam a mesma casa que ele. Veja bem, não há nestas obras uma moralidade do corpo, mas um desfile, uma passagem de vista entre eles.
Até desembocar, agora, em Diário da Piscina. Diário da Piscina vê o corpo como uma máquina total, como uma obra completa, na comparação justa e já feita com a obra do japonês Yukio Mishima. É possível que um limite que se impõe a um corpo, como no caso de Capucho, tentha aberto uma fresta para que o autor fosse capaz de adentrar a materialidade destes corpos de forma distinta: os corpos de Diário da Piscina são tão diversos, tão incríveis, tão belos em seus limites, suas potencialidades e suas dinâmicas que, a ideia que se tem é que, sim, o corpo é matéria sagrada.
Pode-se, inclusive, fazer um enorme dicionário de corpos a partir da obra: o corpo atlético dos professores de natação, o corpo do senhor paralisado que é colocado na piscina e não possui qualquer expressão, ou da senhorinha de cadeira de rodas que demonstra apreço por Claudio, do instrutor com seu corpo potente, mas doce e gentil, do rapaz que nada rápido e forte, como quem tem pressa de se livrar da tarefa, da senhora rica que nada como que com nojo da água e do próprio Claudio que, aos poucos, vai alargando seus limites até se encontrar com um corpo absolutamente diferente daquele que reconhece em si.
Entretanto, o mais interessante nesta dinâmica entre corpos, é que, além de produzir sexualidades diversas, como se uma espécie de erotismo fizesse parte de cada relação que se faz naquele espaço – como em tudo na vida – o que aparece no interior desta dinâmica de corpos é uma dimensão do afeto. O afeto como saída para o que o corpo impede, os que os tabus limitam e o que a palavra não tem.
Diário da Piscina, e isto é o principal, é um livro. Escrito com palavras. E mesmo assim, traz consigo todas essas dinâmicas, nuances. Luís Capucho possui uma gentileza sagrada, um toque que erotiza tudo o que toca, entre o sagrado e o profano, mas não um erotismo simples, mas do prazer em conhecer outros corpos, de conhece-los em suas particularidades. Creio que a obra é um desdobramento das obras de Capucho, mantendo suas obsessões e descobrindo a literatura em lugares em que outros não conseguem ver. É possível dizer que Capucho tem feito, em literatura, o que a literatura brasileira poucas vezes na vida conseguiu fazer.