“O Acidente”, do diretor Bruno Carboni, conta uma história banal e estranha que nos convida a tocar nossas fragilidades.
Uma mulher pedala sua bicicleta junto aos carros. Depois de ser cortada bruscamente por um deles, pedala até o automóvel quando ele para no sinal vermelho. Pede à motorista que abaixe o vidro para conversarem. Ela se nega, ao passo em que Joana se prostra em frente ao carro. A motorista acelera, arrastando Joana, que se segura no capô do carro, e sua bicicleta.
Essa é a cena inicial de “O Acidente” (2021), longa-metragem do diretor Bruno Carboni. A partir desse acidente, acompanhamos o desenrolar da história de Joana (Carol Martins), sua companheira e a família da mulher que a atropelou, Elaine (Gabriela Grecco).
A cena, assim como o restante do filme, é composta por uma série de estranhezas e estranhamentos. Não sabemos quem são essas pessoas, desconhecemos a relação entre elas. Suas expressões severas dão a entender que se conhecem, que talvez carreguem uma história de brigas, mas ao mesmo tempo são tão distantes e impessoais que poderiam igualmente ser totais desconhecidas.
Após o acidente, Joana retorna às suas tarefas ordinárias e, em casa, opta por não compartilhar com a esposa sobre o ocorrido. Mas as coisas fogem do seu controle quando um vídeo, feito pelo filho da mulher que a atropelou, que estava no carro, viraliza na internet. Convencida pela companheira a prestar queixa na polícia, Joana se vê imersa no universo da família de sua atropeladora.
Tão imersa que, cada vez mais, vai adentrando o mundo dessa mulher, seu filho e seu ex-marido, embrenhando-se em disputas conjugais e relacionamentos familiares conturbados e se vendo demandada a fazer parte de um contexto que, antes do bizarro acidente, era-lhe totalmente alheio.
Quando digo “estranho”, “estranheza”, “estranhamento”, uso esses termos em sua acepção mais potente: aquela que permite que olhemos o ordinário com um olhar fresco de um olho que não toma o mundo por natural, que permite que uma cena banal deixe transparecer aquilo que há de mais singular. O encontro estranho e inesperado entre personagens tão distintas vai abrindo pequenas brechas nas quais esse encontro ganha sentido, e vemos que, na diferença, cabem também aproximações.
Isso se torna especialmente forte na relação que Joana desenvolve com Maicon (Luis Felipe Xavier), filho do casal que, naquele momento, vive importantes disputas conjugais e acerca da educação do filho. Adolescente retraído, atravessado pela brutalidade velada do pai e pelo cansaço de uma mãe sobrecarregada, Maicon usa seu celular para fazer breves gravações de eventos aleatórios e ordinários do mundo – um papel jogado ao chão, um inseto, uma gota.
Seu olhar singular para o mundo é, em certa medida, a materialização da proposta do filme: construir novos olhares para aquilo que difere. Não deixar o olho acostumar com aquilo que vemos. Inventar um novo olho para ver novas coisas.
Os estranhos eventos e relações que se desenrolam no filme permitem que, pelo olhar do estranhamento, usemos outros olhos para olhar o comum. E comum aqui é entendido de duas formas: como aquilo que há de ordinário, cotidiano, que faz parte do que chamamos vida: um casamento, um trabalho, um filho. Um comum atravessado, ao mesmo tempo, por processos de naturalização e processos que negam o direito a esse comum a alguns enquanto tomam como dado a outros.
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E ainda em um segundo sentido, no qual comum pode ser compreendido como o lugar no qual coexistem diferenças que, em diálogo e confronto, permanecem diferentes porém encontram pontos nos quais é possível coabitarem o mundo. Há tanta diferença entre Joana e essa família; e exatamente por isso há tanto comum. Nada nos aproxima mais do outro do que a constatação de que sempre diferimos uns dos outros.
É através dessa postura ética de estranhar o mundo e portar-se no mundo como estranho que o filme nos convida a entrar em contato com nossas fragilidades e vulnerabilidades, assim como fazem suas personagens. O que se desenrola na vida de Joana após o inusitado acidente a faz olhar tudo com outros olhos, permitindo-se mostrar vulnerável e reconhecer, no outro, suas vulnerabilidades. Joana mostra-se precária – assim como é precária a vida. E é no reconhecimento dessa precariedade compartilhada que o comum ganha outros contornos, uns mais possíveis, outros mais confusos, mas todos com a potência de nos permitir deixar afetar e ser afetado pelo outro.