Eu tenho mania de ler mais de um livro ao mesmo tempo. Enquanto lia Correio Noturno, da escritora libanesa Hoda Barakat, lia também O Quarto de Jacob, de Virginia Woolf. Duas histórias e contextos absolutamente diferentes, mas que, por um acaso desses sem explicação, ocuparam a minha mesa de cabeceira ao mesmo tempo. Também por um acaso suas histórias tão diferentes se cruzaram quando Virginia Woolf falou sobre as cartas que o jovem Jacob recebia de sua mãe, Betty Flanders. Disse Virginia Woolf:
Pensemos em cartas — em como chegam na hora do café da manhã e à noite, com seus selos amarelos e os verdes, imortalizados pelo carimbo postal — pois ver o nosso próprio envelope na mesa de outra pessoa é entender com que rapidez nossos textos nos deixam e se tornam alheios. O poder da mente de abandonar o corpo é fato óbvio, e talvez tenhamos medo, ou ódio, ou desejemos aniquilar esse fantasma de nós mesmos jazendo ali na mesa. Ainda assim, há cartas que simplesmente dizem sobre tal jantar às sete; outras encomendam carvão; ou marcam encontros. A mão que as escreveu é quase imperceptível — quanto mais a voz ou a expressão do olhar. Ah, mas quando o carteiro bate e a carta chega, o milagre parece sempre repetido — a linguagem que tenta falar. Veneráveis são as cartas, infinitamente audaciosas, desamparadas, e perdidas.
Foi como se, lendo esse trecho de Virginia, o livro de Hoda Barakat se iluminasse de outra forma para mim. Ficava claro que as cartas, independente de serem ou não enviadas e recebidas, são materializações vivas de relações que existem porque são escritas — a linguagem que tenta falar — , porque são registradas. Relações que se transformam em texto, não importa qual o conteúdo do texto; texto que dá corpo, às vezes mais, às vezes menos perceptível, mas de todo modo corpo. Corpo que, mesmo quando não chega ao destinatário, deixa sua marca no mundo.
Às vezes penso nas cartas que não chegam aos destinatários, que estão amontoadas no canto de algum lugar, sem que o remetente saiba o que aconteceu com elas; acumuladas como as folhas mortas nos cantos de ruas vazias. Quem sabe não passaram a queimá-las agora. As pessoas já sabem que não há esperança de suas cartas chegarem ao destino e talvez nem escrevam mais nada! Porque quando os endereços desaparecem completamente dos bairros destruídos e nossas aldeias se tornam desertas, vazias de seus habitantes, a quem se vai escrever?
Hoda Barakat nasceu em 1952, em Beirute, é escritora, professora, jornalista e tradutora. Mora em Paris desde 1989 e é vencedora de vários prêmios, sendo reconhecida como uma das mais importantes vozes da literatura do Oriente Médio. Correio noturno (Editora Tabla), primeira publicação da autora no Brasil e vencedora do International Prize for Arabic Fiction de 2019, congrega cartas escritas por seis pessoas diferentes que, em comum, compartilham o fato de serem imigrantes árabes em algum país ocidental. Cada carta narra a vida de uma pessoa, desconhecida das outras cinco — um imigrante ilegal, uma mulher a espera de um antigo amante, um homem que já foi torturado e torturador, uma irmã que conta ao irmão a morte da mãe, um jovem gay em busca de se reconectar com seu pai, um carteiro. Nenhuma dessas cartas chega ao seu destino. Mas assim como o acaso que fez Virginia e Hoda se encontrarem na minha mesa de cabeceira, ele também fez com que essas vidas alheias umas às outras fossem ligadas por um fio, uma linha frágil e instável que, por meio das cartas, as tornou irremediavelmente entrelaçadas.
As cartas de Correio Noturno não chegam nem chegarão a seus destinatários. Tem-se, assim, uma namorada que não vai compreender o sumiço do namorado, um amante que não saberá se a companheira foi até o ponto combinado, uma mãe que não compreenderá os sofrimentos do filho, um irmão que jamais tomará conhecimento daquilo por que passou sua irmã, um pai que não fará um aceno em direção ao filho, cartas que jamais serão entregues por nenhum carteiro. São cartas escritas em direção a alguém que se deparam com um nada; no entanto, neste nada, encontram outro alguém — encontro inesperado, inimaginado, que impacta e atravessa vidas de pessoas que, não fossem as cartas, seriam totais desconhecidos.
O importante… o importante é que eu voltei a ler essa carta várias vezes, após dois anos. É como se eu conhecesse aquela mulher, como se a visse pedindo perdão a alguém sem obter esse perdão. Não só porque sua carta não chegará, não… mas em razão dessa necessidade que temos de que alguém nos ouça e depois resolva nos perdoar, independentemente do que tenhamos feito.
Há uma imensa tragicidade nessas cartas que não chegam aos remetentes. Traduzem uma experiência de mundo que faz do mundo um lugar hostil, violento, incapaz de acolher, de dar passagem aos afetos bons e ruins que marcam uma vida. Experiência familiar a tantas e tantos imigrantes e refugiados que, dos contextos de guerra e violação em seus países de origem, dirigem-se a países outros em busca de alguma forma mais possível de viver mas encontram xenofobia, racismo, violência institucional, desamparo. É trágico também — e aqui não no sentido de trágico como sinônimo apenas de “triste”, mas como algo ligado à fatalidade que é estar vivo — constatar que, apesar da incerteza sobre se a carta chegará a seu destino, ainda assim se escreve. Escreve-se porque sim, “sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa (…). Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro…”, como diria Clarice Lispector. Porque escrever é uma forma de rememorar e reconstruir um passado que dá pistas sobre o presente e que pode, quem sabe, apontar para um futuro possível.
Assim a vida decide: envia suas tempestades, e nós… plumas ao vento.
Mas há também uma espécie de esperança insistente que mostra que, mesmo na mais adversa das circunstâncias, nossas vidas — aqui, nossas vidas materializadas em palavras — podem tocar outras vidas, dar a elas também o desejo de serem testemunhas e testemunhos de suas próprias existências. Cada carta encontrada pelo(a) desconhecido(a) seguinte faz com que essa nova pessoa se permita conhecer a experiência de outra pessoa e pensar a sua própria experiência, escrevendo-a também, dando-a também esse corpo de palavras que a perpetuará, mesmo que não se saiba por quanto tempo nem em direção a quê.
No parágrafo seguinte ao que citei no início deste texto, Virginia Woolf garante que, sem as cartas, “a vida se esgarçaria”. Hoda Barakat mostra, com maestria, que as palavras e os textos que falam quem somos, o que vivemos e como sentimos são, de fato, linhas que costuram nossas vidas ao mundo, oferecendo algum sentido, por mais provisório que seja. Linhas que, como na costura de um tecido, por vezes se rasgam, desfiam, mais ou menos, deixando ver as tramas rotas e frágeis; mas que, ao mais breve encontro com uma agulha e uma mão disposta a refazer a costura, voltam a fazer daquele pano algo que se possa chamar de vida.
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