Tarso de Melo (1976) é natural de Santo André e reside em São Bernardo do Campo. Além de escritor, editor e poeta, é advogado e professor universitário com doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. É curador de projetos como Vozes Versos, Passaporte: Literatura e Algaravia!
Autor, colaborador e organizador de diversos livros, seus títulos de poesia são: A lapso (1999), Carbono (2002), Planos de fuga e outros poemas (2005), Lugar algum (2007), Exames de rotina (2008) e Caderno inquieto (2012), Poemas 1999-2014 (2015), Íntimo desabrigo (2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (2018), em parceria com Carlos Augusto Lima e Alguns rastros (2018). Também possui publicações nas áreas de Direito e Literatura e em revistas e antologias no Brasil e no exterior. Atuou como editor das revistas Monturo e Cacto e como coordenador de cursos de poesia, prosa e crítica literária. Sua escrita poética é potente, provocadora e crítica. Grande parte dos seus poemas dialoga tanto com os clássicos quanto com a atualidade.
Confira os poemas selecionados:
Tarde
para o Pucheu,
como um tow-in entre as palavras
O velho surfista diz
que sentir a onda nascendo
sob a água, ainda longe,
é como sentir pulsar
o coração da terra.
Aqui, sem mar, mergulho
nas ondas do asfalto,
conto as gotas de sangue
anônimas nas calçadas
e é como se o mundo
desistisse de respirar.
Íntimo desabrigo
daqui ouço a voz dos seus talheres inúteis
seu colchão em que afundo a cabeça que já não me serve
chinelos sapatos passam sapatos chinelos pousam
daqui corto os pulsos em suas tesouras cegas
de suas facas o ferrugem escorre como lava como larvas
de pregos faço o castelo em que vai deitar minha hora
os calendários todos que a água podre funde à pedra
as pedras tortas que desaguam nos calendários podres
os dias todos que as pedras podres rasgam do calendário
o céu de concreto o sal dos afetos o mal o mar de asfalto
é sob eles é sobre eles é deles que tento falar mas não
mas não falo a língua gira em sua sopa rala em sua vala
o zíper de sua mochila oca o caco de seu copo tosco
os tocos de sua voz a foz da minha fala nela desaba
onde guardei minha história onde morei até ontem
Dizem
no país
(dizem)
mais feliz
do mundo
na melhor
(dizem)
empresa
para trabalhar
na hora
em que
ninguém
guarda
riso algum
a tristeza
deve doer
um pouco
mais
Dentro*
para o Mario Rui, por nós
sinto o país doer
no ombro esquerdo
a notícia de ontem
pesando ainda
nas pálpebras
quando a de hoje
já se instala incômoda
no centro da testa
e pesa e pulsa
arrasto no pé direito
a ameaça do ministro
e aquela lei nova
castiga a sola do outro pé
como uma pedra intrusa
no macio da palmilha
arquivo injustiças
no hálito que em vão
tento esconder
com os cafés que espantam
as visitas diurnas do sono
acomodo infinitos
pronunciamentos
oficiais entre a nuca
e o travesseiro
e é na madrugada
que eles ardem mais
coleciono mortes
não esclarecidas
no quadril e é mais difícil
a cada manhã
correr dos leões
Raiz e minério *
ainda é possível ouvir (mais fundo, mais fundo,
você encontra) o som da lama se arrastando por baixo
das portas e aos pés do sofá (o que há é o homem,
esse bicho) nos vãos da estante e no meio dos livros
nas gavetas da geladeira (que invade a terra procurando
outro homem) na altura do peito e entre os dentes
na clareira dos cabelos e na mão (o que há é o homem,
fera descontente) entre os dedos do pé e entre os dedos
da mão no jardim morto (cavando sua própria cova)
na linha da memória e na pia (mais fundo, mais fundo)
nos sulcos do azulejo (rasgando o manto da terra
para chegar a si mesmo) nas gretas e nos interstícios
(o que há é esse bicho) nos orifícios e nas grutas
do corpo (incansável, surdo de si, sem projeto) no oco
do sonho no toco das unhas (comendo os próprios pés
e o chão sob eles) invadindo os relógios e os lençóis
nas palavras (cada vala, cada veia) e entre os versos
nos parágrafos e nas ideias abandonadas (ali está, espelho)
caindo do chuveiro dura (o homem diante do homem)
e inegociável comendo o pão e o chão (o lobo e suas garras
roendo) bebendo toda a água da casa (mais fundo, mais
fundo) engasgando vozes (ali está o homem) fundindo
meus gritos aos seus ruminando (cada vez mais homem,
cada vez mais bicho) como fede como fende come
o tempo come a fuga come (homem não tem limite)
e cospe e rói (bicho não pede licença) e cospe e
* poema inédito inspirado nas tragédias de Mariana e Brumadinho