O silêncio é um espaço físico. Não a ausência do barulho, do ruído, do som. O silêncio não é sequer uma falta de algo. O silêncio é uma ocupação e transborda para todos os lados. No caso de pessoas LGBTQIAPN+, em especial, o silêncio parece ser um território que se ocupa durante muitos anos, passando pelo medo e pela culpa até a aceitação. Nossa sociedade homofóbica nos ensina a silenciar ante às violências contra essa população e parte desse grupo, muitas vezes, silencia, mesmo antes de saber exatamente o que querem, gostam, são. Mas o silêncio, essa sala vazia imensa, se instaura e precisa ser demolido, através de uma força que irrompe por dentro de cada sujeito. A poesia é dessas forças que superam o silêncio e ultrapassam as barreiras dos não-ditos e este talvez seja o principal aprendizado que nos deixa Vitor Andrade em sua obra Todo dia o silêncio do mundo repousa em mim.

O livro é uma coletânea de poesias do jornalista e poeta que foi finalista do Festival de Poesia de Lisboa em 2023. Com 15 anos de atuação na área de assessoria e um trabalho focado no setor cultural em áreas como música, teatro, literatura e audiovisual, Vitor mergulha agora na poesia, nesta reunião de textos que saem pela P55 Edição, na coleção Cartas Bahianas.
Na apresentação do livro, Vitor destaca o silêncio como a primeira habitação de sua vida, cuja superação se dá através da poesia, uma “coragem” que ele assume que vem experimentando. Como homem LGBTQIAPN+, ele anuncia sua poesia como a sua “rebeldia”, “o registro sagrado” do que vislumbra e do que outrora já foi silêncio e hoje ecoa como um grito:
“As páginas preenchem as lacunas do que me foi roubado e ainda é roubado de pessoas LGBTQIA+. Este livro é, acima de tudo, minha defesa da liberdade. Meu manifesto”, ele completa.
E é exatamente isso que vamos ver em sua poesia: um desejo latente de anunciar desejos, sonhos, de listar mundos possíveis, imaginados, reais e irreais e traçar corpos, tanto o seu quanto outros, com o grito voraz que rasga todo silêncio. Uma coisa curiosa, é que neste passeio erótico de alguns poemas, Vitor destaca um binômio que vai reaparecer em diversos momentos: de um lado o silêncio e, do outro lado, o corpo, em especial os dedos das mãos.
Em muitas dessas poesias, os dedos estarão como matéria prima dessa urgência, como se fosse o dedo o responsável pelo toque, o toque que não existia, que ficou na memória e que pode ser recuperado na escrita, como em Pós-tudo:
“Tenho a memória
do dedo
percorrendo tudo”.
Os dedos vão reaparecer em diversos lugares, como em sobre sua foto na praia da ribeira:
“Gosto dessa cidade
Tanto faz em qual país
E do continente inteiro que é você.
Olhos boca língua pernas peito dedo desço
Minha perna treme.”
Ou ainda em ouvindo metá metá cantando trovoa:
“De novo desenho seu rosto
Entre os dedos (…)
E relembro com certo esforço
Voz peito boca língua dedos longos magros”
Esta atenção específica pelos dedos das mãos despertam muitos sentidos em que lê. Primeiro, que os dedos são aqueles que tocam a caneta, o lápis para escrever, são eles que digitam os poemas nos traçados no computador ou no celular, ou seja, quando digitamos, por mais que nossa memória esteja em outro lugar, são nossos dedos nosso primeiro lugar, nossa primeira testemunha de silêncio entre uma palavra digitada e outra.
Pra Conhecer #2: o erotismo literário de Anaïs Nin

Depois, os dedos despertam uma sensibilidade erótica. De quem anuncia uma poesia que precisa escapar do silêncio. Vitor talvez entenda os dedos como o primeiro lugar do toque, a borda extrema do nosso corpo que chega ao outro corpo antes do resto. Os dedos que exploram, que reconhecem, que descem, que tocam, que masturbam, ou seja, os dedos são os primeiros a reconhecer aquilo que as vozes, gestos e flertes denunciam.
Do outro lado desse binômio, temos também o silêncio que aparece em poemas como em ciência:
“Sei seu nome em segredo
Gravado em silêncio
Embaixo de todas as camadas de pele nas quais me escondo”
O trecho, de uma volúpia poética rara, me lembrou a canção de Cazuza, Codinome Beija-Flor, cujo mote também está em proteger o nome da pessoa amada em segredo. No caso do cantor brasileiro, através desse “codinome beija-flor”. Já na poesia de Vitor, o silêncio ecoa em imaginações de desejos:
“Suponho seu sonho
Sua Cama,
Seu corpo sagrado
Guardado em tez macia
Superfície fina e viciante”
O silêncio também é protagonista em outros poemas como em domingo_spc, em referência ao grupo de pagode Só Pra Contrariar, em que o não-dito é rompido por uma voz que ecoa a canção clássica dos anos 90:
“Veja você que veio a voz
De acabar com o silêncio
E veio bagunçando
e era música de domingo qualquer –
‘É tudo o que eu posso querer’”
Leia também: Erotismo no convento: os poemas eróticos de freiras nos séculos XVII e XVIII
Inclusive, o silêncio é protagonista do meu poema preferido do livro, era agosto, um poema em prosa, totalmente sem vírgulas, com apenas alguns pontos separando imagens, sensações, descrições e até uma rara rima no final:
“o verso poente do sol em leão. eram cinco e pouca da tarde quase seis. descrença quase tédio. entre goles de coca-cola quase quente e aquela presença onisciente decorando o abismo dos dias do mês que correu apontando para o fim., todo o dia o silêncio do mundo mora em mim.”

É curioso também reparar que Todo dia o silêncio do mundo repousa em mim traz uma ambivalência: enquanto o livro fala tanto do silêncio como um significante essencial na escrita de Vitor, ao mesmo tempo, a obra traz uma série de citações musicais, tanto no caso do SPC e Metá Metá que citamos há pouco e outros que virão como Milton Nascimento (em cinza e travessia) e Bee Gees (“and you come to me on a summer breeze) como também outras referências como Caetano Veloso tanto em prece:
“As horas de sono que levo
Os sete buracos da tua presença na trilha escandalosa de Caetano”
Quanto no título de virá que eu vi, inspirada na canção Índio que inspira o poema também em sua forma:
“Vira da direção improvável
Do acaso
Do silêncio.” (…)
Pode-se dizer que Todo dia o silêncio do mundo repousa em mim, de Vitor Andrade, é um livro sobre desejos. Os desejos de liberdade, de ser capaz de se expor sem medo, de traçar a própria geografia pelo mundo sem o receio de ser julgado, cobrado, silenciado.
Ao mesmo tempo, a obra é também o grito da liberdade desse desejo, um desejo que eclode por dentro do silêncio e se manifesta num corpo potente através das palavras que tocam e retocam a linguagem.

