Se você ainda não assistiu nos cinemas, “A melhor mãe do mundo”, está perdendo a oportunidade de assistir um verdadeiro show de interpretação e sensibilidade. O filme é protagonizado por Shirley Cruz, que interpreta Gal, uma mulher que trabalha como catadora de resíduos na cidade de São Paulo, mãe de Rihanna e Benin e foi dirigido por Anna Muylaert.

O filme retrata a vida difícil de uma mulher que trabalha como catadora de resíduos e que está em fuga, atravessando a cidade de São Paulo enquanto carrega uma carroça com suas duas crianças no fundo.
Um dos pontos que me chamou a atenção nesse filme foi o peso que Gal consegue suportar. E automaticamente me lembrei do peso carregado por Carolina Maria de Jesus.
Carolina Maria de Jesus foi uma escritora que viveu na extinta favela do Canindé em São Paulo e durante as décadas de 1950 e 1960 precisou catar resíduos, em especial, papel, para conseguir o seu sustento e o de seus filhos: João, José e Vera Eunice.
Em alguns trechos do seu livro, Quarto de Despejo: diário de uma favelada (2019), Carolina compartilha momentos em que carrega muito peso:
Fechei a porta e fui vender as latas. Levei os meninos. O dia está calido. E eu gosto que eles receba os raios solares. Que suplício! Carregar a Vera e levar o saco na cabeça. Vendi as latas e os metais. Ganhei 31 cruzeiros. Fiquei contente. Perguntei:
—Seu Manoel, o senhor não errou na conta?
—Não. Porque?
—Porque o saco de latas não pesava tanto para eu ganhar 31 cruzeiros. E a quantia que eu preciso para pagar a luz (p. 19).

No filme, Gal não reclama do peso, mas seu olhar e a força que usa para apertar os lábios ao subir ladeiras no calor escaldante, incomoda quem assiste e evidencia o seu desgaste físico.
Gal, no filme, está fugindo do parceiro abusivo e violento e talvez por isso, ignore o peso e o cansaço em nome de sua busca por liberdade e paz.

Carolina, também fugia, mas não de um homem, e sim da realidade dolorida que a impedia de descansar e ter um lugar seguro e tranquilo para criar seus filhos e escrever suas histórias.
“Eu saí e fui catar papel. Fui na Dona Julita, ela estava na feira. Passei na sapataria para pegar o papel. O saco estava pesado. Eu devia carregar o papel em duas viagem. Mas carreguei de uma vez porque queria chegar em casa, porque a Vera estava doente e sosinha” (p. 66).
Carolina e Gal carregam peso demais e isso vai além do físico. É o peso da responsabilidade pelas vidas de suas crias. Carregam as dores de não conseguirem, em muitos momentos, o mínimo necessário para viver. A sobrecarga de um sistema que as oprime, as humilha e as devora.
Há uma cena em “A melhor mãe do mundo”, em que as mulheres levam suas carroças carregadas de resíduos para serem pesadas em uma balança no depósito de reciclagem. Enquanto elas passam, outras mulheres gritam o peso da carroça, definindo, portanto o quanto elas receberão naquele dia. Quando Gal passa na balança, a mulher grita: 33 kg. Naquele dia, Gal recebeu R$ 70.
É inimaginável o quanto o trabalho de pessoas catadoras é mal remunerado e o quanto essas pessoas, principalmente as mulheres, precisam se desdobrar para receber o mínimo necessário para sobreviver.
Elas de fato recebem muito pouco, são humilhadas nas ruas pelos passantes, são assediadas e maltratadas nos caminhos que percorrem e são invisibilizadas socialmente, como se não tivessem importância para o bom funcionamento de nossas cidades.
Catadoras de resíduo: da ficção à realidade
Segundo o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), há no Brasil mais de 800 mil catadores de resíduos e movimentam uma grande cadeia produtiva. Catadores de resíduos são essenciais para cumprir a meta de aumentar o índice de reciclagem no Brasil, que atualmente é inferior a 4% de todo lixo produzido no país.
Diante de tudo que foi exposto até aqui, entendo que toda a arte está a serviço de alguém, e ressalto que a arte da Anna Muylaert é uma expressão política forte de parte de nossa sociedade que é negligenciada e pouco reconhecida.
Quero dizer que a arte tem meios e manejos próprios que nos conduzem a pensar não apenas sobre a realidade posta, mas como uma ferramenta essencial na produção de novos futuros e novos meios de existir.
Por fim, sabemos da importância de catadores de resíduos, de sua baixa remuneração, entretanto, jamais saberemos o peso que suporta o corpo de uma catadora de resíduos!

