Há um poema que diz: “e quando ali retornarmos / verás que nunca nos fomos / pois o lugar onde estamos / o lugar onde estaremos / é sempre o lugar que somos”.
Esses versos, escritos por Ana Miranda, não fazem parte da dramaturgia de “Macuco”, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, mas bem que poderiam. Na vida de Sebastião (Edgar Castro), “ser” e “retornar” se confundem — ou melhor, fundamentam sua trajetória. Desde o momento em que saiu da ilha onde morava, na região caiçara, rumo a cidade grande, este homem jamais perdeu o incômodo de não estar no lugar que se é.
Depois de tanto tempo fora da ilha, Sebastião, agora com mais de 60 anos, trabalha 16 horas por dia como entregador de aplicativo. A frustração inflama sua memória. Mas é o canto do Macuco, um pássaro típico da localidade onde viveu, que servirá de mapa para seu retorno.
Para fazer esse trajeto tão cheio de memória, presságios e destruição, Luis Fernando Marques, diretor e cenógrafo do espetáculo, coloca em cena um enorme mastro com vela. No início, o dispositivo gira no sentido horário para apresentar Sebastião, Bernardo – jornalista e amigo do entregador de aplicativo – e o próprio pássaro.

O uso do mastro para guiar a história, ora servindo de relógio, ora como tela para expandir o espaço-tempo do espetáculo, é genial. Os atores se transformam nos ponteiros desse relógio, e as imagens refletidas no tecido da vela revelam os detalhes mais íntimos da vida de Sebastião: a convivência com a mãe e com Bernardo, os momentos de afeto na cozinha e as disputas fundiárias e os incêndios que ainda ameaçam as matas nativas.
É claro que, na superfície, “Macuco” alerta para a devastação da fauna e flora brasileira. O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, o de Dorothy Stang, a brutalidade dos garimpos clandestinos e até os movimentos políticos para “passar a boiada” sobre as florestas gorjeiam a narrativa. Esses horrores acontecem todos os dias. Mas a delicadeza com que o cenário é tratado pelo texto de Victor Nóvoa a partir do microcosmo do personagem muda a travessia do público e revela a face mágica do dispositivo: a de cortina teatral.
Sempre que o mastro cênico rodopia, “feito bailarina”, Vitor Brito e Edgar Castro – ótimos em cena – surgem e desaparecem como aparições, quase como personagens das lendas brasileiras. A luxuosa participação de Cleide Queiroz amplia a vertente da tradição oral e do contar histórias uns aos outros que já fazem parte da nossa cultura, especialmente nas regiões com pouco acesso aos livros. Inclusive, a ausência da atriz no palco – e sua presença através da reprodução em vídeo – devolvem a dimensão dos nossos tesouros imateriais e das lembranças do que estão guardadas na mente.
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Não por acaso, em cena, a memória de Sebastião vai e volta como a maré que um dia lhe serviu de rota de fuga. Então, se há uma vela no palco, de onde vem o vento que empurra a dramaturgia? Ora, do teatro! Nós, o público, estamos dentro do mesmo barco. Sentiremos a ameaça dos latifundiários que usam armas para roubar a casa da mãe de Sebastião. Só que “Macuco” é a arma cultural, social e política que também pode defender as nossas origens contra o apagamento generalizado, seja por meio dos aplicativos nas cidades ou dos atos violentos, no interior do país. Tal como as florestas, a nossa memória está ameaçada.

Em outro lance genial, Luis Fernando Marques embala a simbologia do espetáculo com a música de Fafá de Belém. Ao longo dos anos, o canto do Macuco, que é uma ave terrestre, se tornou desfocado para dificultar que seja encontrado por seus predadores. O animal se comunica com outros da sua espécie sem revelar sua localização. Pode-se dizer que “Dentro de mim mora um anjo”, cantada pela paraense na montagem, assume tal função: protege a cultura popular e confunde os caçadores.
Como na música, quem vê Sebastião “assim cantando” não sabe nada dele. Seu trabalho é uma forma de esquecê-lo. A distância de casa, também. Mas, enquanto houver mar, terra, floresta, árvore, rio, poesia, livro, resistência, peixe, “azul-marinho”, cozinhas, raízes e uma revoada de sonhos, pessoas como Sebastião terão um lugar para retornar.
FICHA TÉCNICA:
Idealização e Dramaturgia: Victor Nóvoa
Direção e Cenografia: Luiz Fernando Marques (Lubi)
Direção de Produção e Assistência de Direção: Helena Cardoso
Elenco: Edgar Castro e Vitor Britto
Atriz convidada (em vídeo): Cleide Queiroz
Figurinos: Rogério Romualdo
Aderecista: Beatriz Mendes
Cenotécnica: Ronaldo Gonçalves Alves (Colab Ateliê)
Automação de cenário: Djair Guilherme
Desenho de luz: Matheus Brant
Assistência de iluminação: Letícia Nanni
Música instrumental: Marcos Coin
Colaboração de movimento: Ana Vitória Bella
Imagens projetadas:
Excertos das obras Homenagem a Turner (2002), Herança (2007) e Ocean/Atlas (2014) de Thiago Rocha Pitta
Registros na Ilha Diana: filmagem de Paulo Celestino e montagem de Luiz Fernando Marques (Lubi)
Assistente de produção – Filmagem: Giuliana Maria
Fotos: Noelia Nájera
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli
Redes Sociais: Jorge Ferreira
Espaço de ensaio: Vila Ouro Preto

