A leitura transforma e sabendo da importância da leitura para a formação das pessoas, muitas mulheres têm transformado suas comunidades com ajuda dos livros, criando bibliotecas comunitárias e outros espaços educacionais, e não poderia ser diferente, afinal, somos um país de leitoras (49%), segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.
As motivações para estas mulheres são inúmeras, como o caso de Haidê Augusta da Rosa, cujo interesse pela leitura surgiu na infância pobre, na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, interior de São Paulo. Ela afirma que:
“Meu pai, ele era coletor de lixo. Então ele achava alguns livros e levava para casa. Desde quando eu comecei a ler, eu nunca mais parei”.
Ione Dias, outra liderança feminina, que foi moradora da periferia de São Paulo e enfrentou muitas adversidades, sempre priorizou os estudos e alimentou o prazer da leitura:
“Livro é uma coisa que faz sonhar, né? Então a gente olhava aquelas coisas, os livros e ia imaginando muita coisa”.
Assim como os livros mobilizaram a vida dessas duas mulheres, elas estão tentando reproduzir seus efeitos, em suas comunidades. Na comunidade de Ione, a ONG Capão Cidadão, funciona há 21 anos e já contribuiu para a educação de mais de 3 mil crianças.
Incomodada com a dificuldade que as crianças tinham com a leitura, Ione inovou com a ideia de aulas de reforço escolar e atualmente a ONG também oportuniza às crianças aulas de balé, contando sempre com o apoio das mães.
Já Haidê descobriu sua vocação e fez faculdade e mestrado em biblioteconomia. Ela dirige a biblioteca de uma escola pública e está à frente de um projeto que incentiva o hábito da leitura entre jovens do ensino médio. Por meio desse projeto, Haidê mudou a vida da Júlia, uma das jovens que passou na faculdade de direito.
Bibliotecas Comunitárias no interior da Bahia
Estes são alguns dos projetos com liderança feminina fomentando a leitura espalhados pelo país. Para mergulhar nessa experiência, o Nota entrevistou Mickelle Xavier, à frente da Biblioteca Comunitária Miro Cairo, bairro periférico da cidade de Vitória da Conquista e Juliana Brito, uma das frentes da Biblioteca Comunitária Donaraça, na zona rural da mesma cidade.
Mickelle Xavier é Conselheira Tutelar, graduada em Pedagogia e Especialista em Gênero e sexualidade na Edução, pertencente do Quilombo Boqueirão dos Negros e respondeu algumas perguntas sobre a Biblioteca COmunitária Miro Cairo.
Jornal Nota: Mickelle, como surgiu o desejo de montar uma biblioteca na sua comunidade?
Mickelle Xavier: A necessidade surgiu da percepção de que a comunidade tem muita dificuldade de acessar a leitura. Com isso, nasceu também o desejo de aproximar o livro das crianças e dos adolescentes, despertando neles novas percepções do que é cultura e de como a educação pode circular em torno da leitura.
JN: Quais são as estratégias utilizadas para enfrentar as dificuldades enfrentadas pelas crianças e adolescentes da comunidade?
MX: Hoje temos muitos leitores que assistem séries e filmes disponíveis nos serviços de streaming e que após assistirem às séries e os filmes, buscam o livro aqui na biblioteca. Assim surge uma nova possibilidade de difundir a leitura com a futura criação de um perfil nas redes sociais para que os meninos que leem essas séries baseadas em livros possam produzir conteúdos com resenha, impressões, indicações de leituras. Além disso, lançamos luz às escritoras e escritores que estão próximos a nós, por meio de um clube de leitura.
JN: Qual sua opinião sobre a importância da leitura para as crianças e adolescentes?
MX: Saiu uma pesquisa recente que diz que os brasileiros leem pouco, e eu questiono, porque isso acontece. Eles simplesmente não querem ler ou desejam ler, mas não conseguem acessar por conta das dificuldades impostas pelo sistema?
JN: O que a Biblioteca Comunitária Miro Cairo representa para você?
MX: Desejo de devolução, de pertença e ver que nossa comunidade não é só violência, um lugar esquecido. Que é multicultural, é multiletramento, e os livros potencializam o que as crianças entregam diariamente. A Biblioteca Comunitária Miro Cairo é esse lugar em que eles podem desenvolver todas suas potencialidades de maneira livre.
Mickelle desenvolve um belíssimo trabalho em sua comunidade desde o contexto da pandemia da Covid 19 e é uma referência em termos de resistência e luta, por meio da divulgação de cultura e múltiplos conhecimentos.
Entrevistamos também Juliana Brito, que é Secretária Administrativa do Instituto Relicário e Graduanda em Biblioteconomia, nos conta um pouco da sua experiência na Biblioteca Comunitária Donaraça e seus desdobramentos:
JN: Juliana, como surgiu a Biblioteca Comunitária Donaraça?
Juliana Brito: A Biblioteca Donaraça surge no contexto da pandemia, quando eu e Josué (seu esposo) pensamos em desenvolver alguma atividade ligada a educação inicialmente e depois de leitura, como forma de compartilhar o privilégio de ter estudado e ter a oportunidade de desenvolver o hábito da leitura e ter acesso aos livros.
JN: Por que vocês escolheram a zona rural para realizar esse projeto?
JB: Enquanto atravessava alguns adoecimentos, esta foi uma forma de resistir e se reinventar e contribuir partilhando coisas boas com outras pessoas, em especial da zona rural. Um lugar no qual encontramos refúgio para tratar da saúde e ter um novo modo de vida. Era preciso compartilhar o que tinham de mais especial, que era o acesso aos livros.
JN: E qual a importância da leitura nesse processo?
JB: A leitura tem um peso muito grande, pois por conta do conhecimento da palavra, foi que conseguimos conhecer novas possibilidades e novos mundos. A leitura e a educação sempre foi uma ponte para gente. A leitura ajuda na mediação com o mundo. Quando outras pessoas têm acesso aos livros e atividades culturais, estão compartilhando a capacidade de ler, interpretar e reinterpretar o mundo. Conduzindo a mais autonomia na própria vida.
JN: E como se dá essa partilha com as pessoas da zona rural e a Biblioteca?
JB: Buscamos não ter uma atitude controladora, apresentando uma cultura letrada a população do campo, mas partilhando e fazendo trocas, através da capanga literária, levando livros a casas mais distantes, contribuindo para que as pessoas encontrem seus próprios meios de emancipação.
JN: Finalmente, o que a Biblioteca Donaraça significa para você?
JB: A Biblioteca representa um lugar de encontro, partilha, valorização da cultura popular, enraizamento e compartilhamento de habilidades e potencias. Ela foi reconhecida em 2023 como Ponto de Leitura e em 2025 como Ponto de Cultura, dentro do projeto da cultura Viva. Juntos podemos ser mais!
Ficamos muito felizes em conhecer mais sobre esses projetos no interior da Bahia e sabemos que estes são apenas alguns dos exemplos de bibliotecas comunitárias ao redor do Brasil e de mulheres que são agentes de transformação social pela leitura em suas comunidades.
Vale ressaltar que para manter projetos como esses em pleno funcionamento, as bibliotecas e suas lideranças precisam do apoio da comunidade, da sociedade civil de maneira geral e de recursos financeiros, sejam de origem pública quanto privada, para poderem continuar ajudando crianças e jovens na sua formação.