Uma das principais características do barroco é o que, em italiano, se chama de chiaroscuro, que em português seria traduzido para “luz e sombra”. A ideia é que haja um jogo de transição entre o claro e o escuro cujo resultado seria uma menor nuance de efeitos nos tons, de modo que toda mudança seria lenta, gradual, quase imperceptível.
Ao contrário do que se acredita, no entanto, a ideia do barroco não é mostrar a diferença entre claro e escuro, mas propor que haja uma zona indistinta e complexa, cheia de dobras, nuances, detalhes que só podem ser vistos à meia luz que, ao mesmo tempo em que oculta muita coisa de nossos olhos, nos deixa ver os contornos mais horríveis do que não está visível. Esta é a principal sensação que temos ao assistir “Ainda Estou Aqui” (2024), o já cultuado filme de Walter Salles.
A história do filme é bastante conhecida: durante o auge da ditadura, após o decreto do AI-5, a família Paiva, do então ex-deputado Rubens Paiva – sua esposa Eunice e seus 5 filhos – vivem uma vida de classe média alta no Rio de Janeiro. Um dia, são recebidos em casa por alguns homens que levam Rubens. Em seguida, Eunice e sua filha são detidas para prestar depoimento na sede da polícia e nada mais se sabe de Rubens, que se torna mais um desaparecido político da ditadura brasileira. Eunice, então, precisa sair de seu mundo idílico para buscar a verdade por trás do sumiço de seu marido.
Walter Salles, que tem uma lente própria para filmes que captam tanto a percepção brasileira quanto de estrangeiros, faz de Ainda Estou Aqui um filme mais de registros do que de memória. A todo instante vemos diante das lentes formas de registros do tempo: câmeras fotográficas, filmadoras e seus respectivos filmes, discos de vinil, cartas.
As 12 melhores citações de Eu Receberia As Piores Notícias Dos Seus Lindos Lábios, de Marçal Aquino
A obra não se debruça apenas sobre o que seria a memória de Marcelo Rubens Paiva, um dos filhos mais jovens de Rubens e responsável por escrever o livro homônimo que inspirou o filme, mas sobre materialidades que podem de fato enfrentar a narrativa fraudulenta da ditadura, a de que seres humanos fogem do nada e desaparecem sem motivo. Inclusive, esse é um dos motes do filme: saber não só o paradeiro de Rubens Paiva, mas oficializar sua ausência, seu sequestro, sua tortura e sua morte.
Este ponto também pode se dobrar para a figura de Eunice, magistralmente interpretada por Fernanda Torres. Apesar do filme ser quase todo focado nela, o que vemos é mais uma Eunice que olha do que é olhada, uma Eunice que fica atenta para os filhos, para os retrovisores, para os olhares dos passantes nas ruas, dos banqueiros, dos carros estacionados em frente a sua casa. Ela aprende com a perda do marido a estar atenta, atenta e forte, podemos dizer, para enfrentar o mundo com os recursos que o próprio mundo lhe dá.
Da primeira para a segunda parte do filme, temos uma transição bastante brusca entre o mundo solar dos Paiva e a escuridão que passa a assombrar a família. Porém, essa escuridão está permeada pela descoberta de um mundo com mais nuances que estavam até então ocultadas pelos privilégios de classe da família e pela astuta participação de Rubens na defesa dos perseguidos do regime. Tanto que, com a chegada dos milicos, a primeira ação dos reaças é fechar as cortinas e, assim, transicionar nossos olhares para uma película que, pelas mãos deles, muda de lente, muda de cor.
Agora, o filme passa a ser barroco: com dobras, curvas, nuances, silêncios e não-ditos que incluem até mesmo ambivalências como um banco iluminadíssimo para redobrar a violência da impossibilidade de se retirar dinheiro na ausência de um parente assassinado nos porões da ditadura. E isso torna o todo mais poético, afinal, nestes jogos entre mundo oficial e mundo dos porões está traçado o que talvez seja a maior violência da ditadura: a impossibilidade de se saber contra o que se está lutando e com que armas é possível se municiar.
Passo a passo, porém, Walter Salles vai transformando Ainda Estou Aqui em um registro também de algo que explode para fora da família: o que lemos é a história da nossa própria democracia, dos nossos esforços de memória e, principalmente, de uma celebração da retomada do nosso cinema. É quando temos a marcante presença de Fernanda Montenegro que, naquele instante, se torna símbolo, matéria, metáfora e marca de muitas coisas: de que sobrevivemos à ditadura; de que Rubens Paiva vive; de que Eunice Paiva é eterna; de que Marcelo Rubens Paiva é um monumento de nossa cultura; de que Fernanda Torres recebe o bastão da mãe no panteão do nosso cinema; de que Selton Mello ganha uma nova mãe após a morte da sua, Selva, com Alzheimer – mesma doença de Eunice; e, por fim, que o cinema nacional precisa celebrar sua sobrevivência, sua criatividade, sua resistência.
Ainda Estou Aqui lembra que a vida é transitória, que ainda estamos, mas que estamos e que esse lugar precisa ser disputado como história, como memória através de testemunhos, relatos, livros, filmes, discos, e tudo que for possível. Ainda bem que muitos sobreviveram para contar, significa que todos os nossos heróis sempre ainda estarão aqui.
Veja o trailer completo: