Em conversas com outros colegas críticos, observamos uma certa tendência no cinema brasileiro e americano de buscar singularizar certos males da sociedade, que passam a ser, não resultados de estruturas societais complexas, mas sim de alguns indivíduos maldosos, que não representam nada além de si mesmos. Ninguém quer enxergar a possibilidade de o problema estar dentro de si e dos outros. Lembro-me de Marighella, por exemplo, onde toda a estrutura estatal da ditadura militar se concentrou em uma única figura, o vilão interpretado por Bruno Gagliasso.
Por isso, aproximei-me de O Aprendiz com certa desconfiança, diante da possibilidade de a obra de Ali Abbasi realizar o mesmo procedimento com a figura de Donald Trump. No entanto, logo no primeiro frame, o diretor localiza o ex-presidente americano não como um ponto fora da curva, mas como parte de uma longa tradição americana de figuras de poder moralmente duvidosas, para dizer o mínimo. O longa abre com a figura de Nixon discursando que os americanos merecem saber se o presidente é um “trapaceiro”, ou crook.
No centro dessa filiação a uma grande história americana, está Roy Cohn (Jeremy Strong), advogado cuja história pessoal se confunde com a dos Estados Unidos. Cohn foi participante ativo das perseguições realizadas pelo senador Joseph McCarthy e colocou o jovem Trump (Sebastian Stan) sob sua tutela, ensinando-lhe o comportamento e os meios que deveria assumir para chegar ao poder.
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Mas Trump não é uma criação apenas de Cohn, e sim uma amálgama das diversas facetas do ideal americano: um monstro de Frankenstein ideológico, com o liberalismo desenfreado de Reagan também servindo para pavimentar seu caminho ao poder, além da boa dose de cumplicidade da mídia, que se encantava com suas obras faraônicas e declarações absurdas. Pouco parece ter mudado dos anos 70 para cá.
Além da investigação do que faz Trump ser o que é, há também certa humanização no início da narrativa, mostrando-o batendo de porta em porta, coletando aluguel dos inquilinos dos prédios da família — um ato tão banal para alguém que, hoje, se apresenta como uma figura maior do que a vida. A complicada relação com o pai também revela uma dimensão mais “gente como a gente”, tão distante da maneira como ele se apresenta atualmente: um salvador da pátria.
Mas é uma humanização que nunca o redime. Abbasi não pede que se simpatize com Trump, mas tenta entendê-lo como uma criatura tipicamente americana, uma colcha de retalhos de cada pedaço que fez essa nação ser o que é — e talvez até pior do que o que veio antes. Um dos grandes pontos dramáticos do filme é o tratamento frio que Trump oferece a Cohn no fim da vida, vitimado pela AIDS. Cohn, ao menos, se cercava de pessoas e parecia ter um sincero afeto por alguns. Já Trump não parece ter espaço para isso em sua vida e não se furta nem de tentar trapacear o próprio pai. No olhar do futuro presidente, só há espaço para o poder.