A potência da literatura de Milton Hatoum está em se colocar sempre na perspectiva das minorias. Porém, a noção de minoria de Hatoum se difere um pouco do que chamamos hoje em dia de “pautas identitárias”. Não que o autor vá contra elas, pelo contrário, mas ele busca sempre nas suas minorias um devir minoritário ainda maior.
Em Dois Irmãos, por exemplo, o foco está em duas masculinidades decadentes opostas: uma dos bem-sucedidos que detém o status e o poder como marca de sua força e outro daquele que, incapaz de se encaixar no mundo, desperdiça vida e corpo no álcool e em uma vida desregrada. Tudo isso, claro, retratando a vida em sua região: a Amazônia, principalmente a complexa e rica cidade de Manaus.
No caso de Relato de um Certo Oriente, que na adaptação para o cinema de Marcelo Gomes virou Retrato de um Certo Oriente, Hatoum toma um duplo cuidado em tratar de sua minoria: os árabes refugiados no Brasil. Primeiro, que ele tratou de um grupo minoritário lá do Líbano, os árabes cristãos, depois que ele tomou o cuidado em dizer que estamos tratando de um “certo” oriente, de modo que o que veremos não pode de forma alguma ser visto de forma exótica ou fetichista de como foi a vinda dos árabes para essa terra. Assim, diz ele, essa é UMA história, um relato de UM oriente.
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Uma das obras que mais pensou nessa questão foi Orientalismo, do palestino Edward Said, que escreveu seu livro pensando que “ao olharmos para o orientalismo dos séculos XIX e XX, a impressão dominante é a de uma insensível esquematização de todo o Oriente”. Para Said, o que chamamos de “oriente” é uma invenção do ocidente, cujo estrutura é:
“uma consciência europeia soberana de cuja inconteste centralidade surgiu um mundo oriental, primeiro de acordo com ideias gerais sobre quem ou o que era o oriental, depois segundo uma lógica detalhada, governada não apenas na realidade empírica, mas por um conjunto de desejos, repressões, investimentos e projeções.”
Partindo desses pressupostos, voltamos ao filme. Retrato de um Certo Oriente (2024), começa com dois irmãos que vivem no Líbano, no ano de 1949, enquanto o país enfrenta uma guerra iminente.
Assim, Emilie e Emir embarcam em uma viagem rumo ao Brasil em busca de dias melhores. No caminho, Emilie se apaixona por um comerciante muçulmano, despertando um ciúme no irmão que vê na diferença religiosa dos dois e em um passado traumático uma forma de manter a separação entre ele e sua irmã. Mais que isso, rumo ao Amazonas, os dois se veem em uma comunidade indígena no meio da floresta Amazônica antes de chegar a Manaus, promovendo um intenso choque, mas também contato de culturas diversas que se atravessam.
A escolha de fazer o filme em preto e branco é um acerto que evita cair nos clichês dos tratamentos de cores de outros filmes que se passam no chamado oriente, principalmente no contraste entre o terroso de lá e o verde das florestas daqui. Além disso, Retrato de um Certo Oriente encanta pelos detalhes da direção que não deixam de se focar em pequenos detalhes culturais pelo viés imagético: uma cruz, um corpo que dança, um rosto que se deforma, um toque num cabelo. Sem contar nos diálogos que se dão, primeiro, entre olhares e, depois, nas graduais palavras de uma língua ainda desconhecida.
Outro aspecto interessante da obra está nas interseções culturais entre árabes e indígenas: se indígenas são uma espécie de refugiados em nossa terra, a todo instante sendo acossados por grileiros e latifundiários, árabes, libaneses e palestinos vivem a mesma coisa: a iminente força colonizadora israelense sinonista e das potências mundiais que veem nas defesas das diferenças um entrave para sua ocupação, colonização e subjugação completa desses povos.
O jogo entre os nomes: relato, no livro, e retrato no filme, também mostra que a história é também uma imagem que se atravessa de memórias, alteridades, multiculturalidades e, principalmente, possibilidade de encontrar acolhimento onde quer que se esteja.
Retrato de um Certo Oriente fotografa uma história, um momento e um pedaço de um povo que precisa ser olhado com muito cuidado para que desfaçamos a imensa névoa de desconhecimento que nos assola. Um grande filme com um fotograma pequeno de um mundo ainda a ser descoberto.
Confira o trailer do filme:
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