Documentário Terra dos Ciganos é um retrato em movimento, um relato que só pode se dar pela sua transitoriedade
O filósofo Giorgio Agamben afirma que os refugiados, os imigrantes e as pessoas na diáspora são o que há de mais contemporâneo em nosso tempo. Se o século XIX foi marcado pela formação dos Estados-nação, o século XXI é aquele em que as identidades não se dão mais em relação a terra e a língua, mas em relação a uma identidade múltipla que, formaria assim, o que seria o amálgama de um povo.
Em “A língua e os povos”, o filósofo aponta para uma incoerência que é as potências mundiais pegarem em armas para defender estados criados artificialmente enquanto povos numerosos como os curdos, os armênios e os palestinos, ou seja, aqueles que não têm Estado, “podem ser oprimidos e exterminados impunemente, para que fique claro que o destino de um povo só pode ser uma identidade estatal.”
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Esta questão exemplifica a grande contradição, uma verdadeira pedra no sapato, que os povos ciganos impõem ao conceito de identidade nacional inventado pelo imperialismo das grandes potências estatais: a identidade cigana é aquela que se estrutura na ideia de nomadismo e em uma língua que não se compromete em se fixar, mas em mudar constantemente. O motivo disso são vários, mas o principal deles é que, após milênios de perseguição, ciganos entenderam que a linguagem própria cambiante é uma proteção, e inverdades sobre suas origens são essenciais para novas e constantes adaptações.
Fiz essa introdução porque achei necessária para falar de Terra dos Ciganos (2024), documentário de Naji Sidki, que retrata a vida de alguns grupos ciganos brasileiros. Através da música e da relação entre estas canções com a cultura cigana, o diretor explora a vida dessas comunidades ao redor do nosso país, mostrando como preservam e transformam suas tradições enquanto se integram à sociedade brasileira.
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Diante dessas histórias, que obviamente se passam pelas estradas do Brasil, os povos ciganos dão uma lição de sobrevivência e desapego e também do seu senso de comunidade. Sem se ancorarem em valores ocidentais, a constante adaptação é uma marca relevante que se vê, inclusive, em suas músicas: algumas são cantadas em suas línguas, outras em português e outras, ainda, são compostas por um híbrido de linguagens.
Um dos sujeitos retratados em Terra dos Ciganos é Ferreirinha, um senhor de 82 anos de idade, que narra em suas canções muitas das suas experiências dos preconceitos sofridos, mas principalmente dos efeitos da passagem do tempo em seu corpo que, ainda hoje, deseja estar em movimento. Em uma de suas músicas mais bonitas, ele canta:
“Nunca mais à sua terra há de voltar
Nunca mais sua terra há de deixar”
É nessa ambivalência inescapável que vamos acompanhando uma festa de casamento com três famílias de primos que se casam, ou então dois ciganos que negociam por duas vezes uma égua – na primeira, na hora da compra, ela vale pouco porque só serve pra criança – na segunda, na hora da venda, ela vale mais que uma picape.
Através das andanças, vamos percebendo também a rejeição das pessoas em geral frente aos ciganos. Nas ruas de São Paulo, a maioria se desvia e evita qualquer contato com as mulheres que leem as mãos e que dizem que seu dom vêm tanto da cultura quanto do espírito. Descobrimos também que existem no Brasil três principais grupos de ciganos, sendo alguns deles que acreditam que o nomadismo é a única forma de manutenção da tradição enquanto outros acreditam na integração como marca de sobrevivência.
Para o diretor Naji Sidki, contar essa história é também pensar as suas origens:
“Eu sempre me interessei por culturas nômades. Minha mãe é pintora, americana, e meu pai, um matemático, é refugiado palestino; eu nasci no Brasil. Meus pais conseguiram trabalho como professores na Universidade de Brasília depois de muito peregrinarem pelo mundo em busca de uma Pátria que os aceitasse. Ao ter contato com ciganos da cidade de Alexânia – Goiás – me interessei por esta cultura. O filme é sobre – através da sua arte – o desejo da aceitação de uma comunidade excluída”.
Terra dos Ciganos é um retrato em movimento, um relato que só pode se dar pela sua transitoriedade, a história de uma história que não se fixa. Por isso, a história cigana é sempre tão bela e desafiadora. Afinal, como pensar a identidade como algo fixo quando uma identidade milenar nos insiste em dizer que é justamente o contrário disso? A resposta está em um trecho do filme que nos diz:
“De onde viemos? Viemos de muito longe. (…) Somos ciganos. E somos nós que damos a medida absoluta da liberdade que vocês não possuem. Mas desejam possuir. Somos espíritos anarquistas, os reis do nada, os sacerdotes da boa vida, as ampulhetas onde o tempo não escoa. A natureza é a roupa da terra. E nós? Nós somos o perfume da terra. E o mundo é a terra dos ciganos”.
Veja o trailer do filme:
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