Idealizada e escrita por Larissa Siqueira, com direção artística de Larissa Siqueira e Zaba Azevedo, a remontagem da peça “Reencarnação” e montagem da peça “Aparição” ganha uma temporada dupla no SESC AV PAULISTA, em São Paulo, levando ao teatro um díptico: uma peça e seu avesso, que passeiam sobre os delírios de uma vida que se viu próxima do fim.
Quantas formas pode uma peça de teatro assumir?
É diante dessa reflexão que Larissa Siqueira (ou Lara Cunha, ou Lara Negalara), atriz, escritora e diretora, cria o outro lado, o avesso, de um espetáculo.
Eu acho que a arte tem o poder de ser aparição para as pessoas, de te fazer reencarnar sem morrer, de reacender alguma coisa.
A remontagem de “Reencarnação” e a montagem “Aparição” tornam possível uma peça e seu avesso, as quais passeiam sobre os delírios de uma vida que se viu próxima do fim. Em “Aparição”, sem fazer distinção entre obra de arte e eventos autobiográficos, a artista chama todas as experiências de Aparições, no entanto, não deixa de estabelecer o espaço da arte como um espaço de trabalho, compondo assim, uma curiosa narrativa historiográfica e performativa. Nesse contexto, o espetáculo convida o público a mergulhar no espaço multidimensional da arte , abraçando suas diversas manifestações e destacando a urgência de conhecer, cada um, seu próprio processo criativo e inabalável.
Já “Reencarnação” é o lado avesso, uma palestra-performance que destaca com detalhes as motivações de cada beleza exposta em “Aparição”, dando nomes e datas de cada parte desse inventário, revelando então o seu avesso.
O espetáculo está com uma temporada dupla no Sesc da Avenida Paulista, em São Paulo, que finaliza em 26 de agosto.
Na peça “Aparição”, a memória surge como uma desmontagem da palavra
O Jornal Nota fez algumas perguntas à atriz, escritora e diretora de “Aparição” e “Reencarnação”, Larissa Siqueira, confira:
Larissa, pode contar um pouco sobre como começou sua relação com o teatro? O que te inspirou a ir para as cênicas?
Na escola ainda. Eu tinha um grupo de teatro, e comecei ali. Eram leituras de textos já com desenvolvimento de contagem. Era essa atividade de você ainda adolescente ter um lugar onde se encontra amigos, as mesmas pessoas, para desenvolver uma ideia. A prática de trazer pro corpo a ideia de alguém, um personagem ou uma pessoa, já era muito forte. E quando começou é como se eu não fosse para, e aí já são 30 anos.
Essa nova temporada marca uma remontagem de “Reencarnação” e a estreia de “Aparição”, sendo uma o avesso da outra como você diz. Como surgiu essa ideia de fazer duas peças complementarem uma a outra?
Esses dias alguém me perguntou se eu já tinha isso na cabeça quando escrevi a primeira, e não, não tinha. Eu escrevi uma peça, ali na época da pandemia, março de 2020. E já era uma peça que eu passava por algumas memórias e não me fixava, nem desenvolvia uma memória só. Como se eu quisesse fazer um inventário de memórias, ou, como chamo de aparições – coisas que passaram por minha vida e que valeram a pena viver. E aí, então, fui costurando essas aparições, mas não dei o nome delas, não coloquei, digamos, créditos. Passava por uma música, mas não dava os créditos dela – dizendo quem a compôs e em que ano -, apenas dizia o que essa música me causava. Passava por lembranças minhas, da minha mãe, da minha família, mas não dava nome de ninguém. Um ano depois da execução online da peça, fui convidada a participar de um laboratório chamado Museu, Teatro e História que se tratava de uma prática de desmontagem, e discutia esse gênero de desmontar, remontar ou ‘fazer de novo’. Estudando isso, eu levei essa peça para o laboratório e resolvemos desmontá-la. Eu fui pegando cada pedacinho dessas memórias e abrindo essa caixinha, dando nomes a elas. Assim surgiu essa palestra-performance, que é “Aparição”, por que quando você vai mostrando o avesso de cada coisa, isso toma um caráter como de explicação. Assim, criou-se esse formato, em que uma peça e uma palestra-performance, ambas sobre as mesmas coisas.
E esse nomes “Reencarnação” e “Aparição”, como surgiram?
“Aparição” é um nome que dou para essas memórias que nos assanham, digamos assim, as coisas que nos saltam os olhos. Uma memória, uma cena, um filme, um livro que te agita, que te causam determinada agitação. Acho que, de certa forma, todos passamos por isso e reconhecemos. Porque a gente tem um banco de memórias, claro, mas há uma parte desse banco de memórias que produz coisas, inclusive logo no momento em que se dá de cara com essa cena que te agita. Quando, por exemplo, você vê um acidente de carro na estrada e isso mexe com você de uma forma que chega em casa e escreve uma música pensando nele, sem saber o porquê. À isso dei o nome de Aparição, e digo que é aquilo que você olha, mas a coisa olha pra você também.
Quando eu fiz a desmontagem da primeira peça, eu quis chamar de Reencarnação por que, primeiro, eu volto a todas essas memórias, a algum lugar, e isso tem a ver com reencarnar. Mas, ainda, eu acho que cada experiência de aparição nos faz reencarnar sem morrer, a gente zera, renova. Por isso, eu acho que a arte tem o poder de ser aparição para as pessoas, de te fazer reencarnar sem morrer, de reacender alguma coisa, por isso eu faço referências a tantas obras artísticas na peça. Às vezes algo que já parecia morto reencarna.
As reflexões sobre a arte e suas implicâncias são extremamente presentes em sua criação e performance, como de maneira quase metalinguística. De que outras formas a arte é explorada e expressa na peça?
Tem esse tom metalinguístico, sim. Mas, acho que o mais importante ali é o valor da subjetividade nos dois trabalhos. Sobre onde estamos colocando as nossas subjetividades, o que elas tecem, o que a gente sente quando vê alguma coisa que causa esse estranhamento. Por que uma música causa algo em você que outra não causa? E a arte tem tudo a ver com isso, essa é a matéria-prima da arte, tanto do artista como por seu público, que tá fluindo daquilo. É por essa via subjetiva que a arte trabalha. Então, por isso tantas obras de arte estão presentes nesses dois trabalhos. Como o trabalho também é uma obra artística que se apresenta em instituições artísticas, acaba tendo essa leitura metalinguística, essa dobra. O mais importante pra mim, o motivo dessas obras de arte, é fazer perceber que a fruição da obra de arte, seja qual for, tem o poder de tocar sua subjetividade, isso é algo que não pode se deixar por menos.
Lidar com suas subjetividades não é fácil hoje em dia. Em uma parte do texto da peça eu digo que “existem formas dominantes de subjetivação, e está cada vez mais difícil de escapar”, porque, claro, estamos em um universo que sabe muito bem lidar com nossa subjetividade, pelos algoritmos e redes sociais, eles tão ali, lidando com nossa zona de subjetividade, é importante estarmos atentos a isso.
Sua peça começou a ser escrita durante a pandemia. De que maneira o período de quarentena inspirou sua criação artística?
Bem, eu tive a sorte de, durante os cinco primeiros meses de pandemia, ir para a região rural em São José do Vale do Rio Preto (RJ), onde costuma ter residências artísticas, mas nessa época não. Eu fiquei numa fazenda a convite de uma amiga que não tinha internet com facilidade, foi um contato com a natureza muito forte por um tempo estendido. Lé, eu tive um tempo para escrever que não teria em qualquer outro momento somado a uma proximidade e medo da morte, sentida por todos. Esse dois fatores foram o que me fizeram, de fato, escrever. E essas experiências que vivi nessa época entram na escrita, também, coloquei no texto de “Aparição” toda essa escuta de sons da região, como os animais, por exemplo. A escrita teve muito desses sentimentos e experiências que nos colocaram em um, digamos, lugar novo.
Os espetáculos possuem aspectos pessoais e autobiográficos seus. Como é colocar-se tão presente no espetáculo, tornando-se vulnerável diante do público?
Como eu tenho, na frente, digamos, essa bandeira da subjetividade, tudo o que entra ali vai para essa via. Eu acho que, apesar da subjetividade ser íntima e única, apesar dela ter esse caráter autobiográfico, não é minha vida que interessa nas peças. Então, eu não sinto ou busco essa vulnerabilidade que pode aparecer em determinadas autobiografias, em sua condição narrativa mais clássica de cronologia. Já nas minhas peças, a personagem se desfaz nas experiências que teve, experiências estas que encostam em muitas outras pessoas. Então, é a Larissa abrindo a sua subjetividade a partir da Grace Passô, a partir do Gilberto Gil, a partir do Jonas Mekas, da Janaina Leite. São essas obras que estão na frente, e o espectador tem a chance de pensar sobre elas. A personagem está ali como o baú que juntou essas obras todas, é uma autobiografia que passa por outras pessoas e obras.
Por último, você tem inúmeros trabalhos como atriz, qual a primeira coisa que passa na sua cabeça quando sobe no palco?
Quando começa a peça, é tipo um “jogão” que vai acabar só no fim. Quase como uma corrida, pensando como nas olimpíadas que foram agora. A partir do começo eu não penso mais naquilo, é um jogo para o qual me preparei e que preciso ir até o fim. Então, não há tanto espaço para pensar antes. Mas, acredito que antes disso tudo, o que me passa é um respeito e um agradecimento a quem já passou por ali antes, a quem já esteve naquele palco, todos os trabalhos de figurino, luz, cenário, som, contrarregra, camareiro, maquinistas, atores, dramaturgos, diretores, ensaiadores. Eu tento me colocar em respeito à história anterior e ao espaço de trabalho, uma certa gratidão curta e rápida a essa ancestralidade de trabalho. A quem mantém e vem tornando aquilo possível.