“Oppenheimer” (2023): Amar (ou odiar) a bomba.

Durante uma conversa entre diretores organizada pelo site The Hollywood Reporter, o apresentador perguntou para o diretor austríaco Michael Haneke se ele faria um filme sobre Hitler. A resposta é longa, mas quero destacar o trecho onde o cineasta fala sobre A Lista de Schindler, de Steven Spielberg: “A mera idéia de tentar criar suspense sobre a possibilidade de sair gás ou água do chuveiro, para mim, é revoltante.[…] Para mim, tudo que trata desses assuntos como entretenimento é revoltante”.

Refleti sobre essa frase enquanto assistia Oppenheimer (2023), especificamente a cena do teste de Trinity, onde todos os elementos da cena estão voltados para provocar tensão. A possibilidade da bomba falhar é levantada a cada momento, o tempo não ajuda e um teste prévio acabou de falhar. A trilha sonora é intensa, e remete ao som de um relógio. Em cena, um cronômetro marca os segundos que faltam para a explosão.

Mas, o que exatamente está em jogo nessa cena? Sabemos que o teste é bem-sucedido, e que a temida reação em cadeia capaz de destruir o mundo não aconteceu. Mesmo dentro da narrativa, isso é um fato, pois sua estrutura não linear aborda também eventos futuros, muito depois das bombas explodirem sobre Hiroshima e Nagasaki, matando mais de 200 mil pessoas, e afetando as vidas de milhares de outras. A tensão está sendo criada em nome de quê? E mais, por que o sucesso da bomba deveria representar um momento menos tenso? Após o teste, o sol nasce, Oppenheimer (Cillian Murphy) é parabenizado por seus colegas do Projeto Manhattan, todos sorriem, e o tom geral é de triunfo. Seus amigos o levantam nos ombros, enquanto a bandeira americana trêmula ao fundo, e a trilha é triunfante. 

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Christopher Nolan, diretor e roteirista do filme, não é omisso diante dos impactos da bomba atômica, e parte de Oppenheimer aborda essas consequências para a geopolítica como um todo, como bem mostram as cenas onde seu protagonista com alucina pessoas mortas e carcaças incineradas. Mas essa postura crítica parece se confundir diante de uma evidente admiração pela figura do Oppenheimer, cuja representação navega entre um olhar sóbrio – vide as diversas cenas onde ele cede seus ideais – e uma tentativa de torná-lo icônico.

A bem da verdade, o tratamento dado a diversos momentos da história em torno da bomba é de certa solenidade. Por exemplo, a primeira menção a Los Alamos, é precedida de uma pequena pausa por parte de Oppenheimer, tempo bastante para a tela escurecer e o nome preencher nossos ouvidos, tática digna de trailer. Momento similar se dá a menção do futuro presidente americano John F. Kennedy, com o personagem de Alden Ehrenreich dando, novamente, uma breve pausa antes de citar o ilustre nome, na época um jovem senador.

Mas um momento centrado no protagonista é mais revelador sobre a maneira que Nolan vê seu biografado. Após levar um puxão de orelha de Isidor Rabi (David Krumholtz) acerca do uso de uniforme militar, “Oppie” recupera suas raízes. De volta ao seu escritório, ele coloca seu paletó, e em uma mesa, está seu cachimbo e chapéu. Conforme ele toca nesses objetos, a música se intensifica. Na sequência, ele caminha ao ar livre por Los Alamos, com todos seus adereços, seu rosto preenche a tela e a melodia é ainda mais forte. Pouco se difere de uma cena onde um super-herói, finalmente, coloca seu uniforme. 

No roteiro, esta cena o descreve como “O icônico J. Robert Oppenheimer”  em letras garrafais. Na parte escrita do filme, Nolan quebra uma importante convenção do roteiro cinematográfico, redigindo o texto em primeira pessoa, como se o próprio Oppenheimer o escrevesse. Ele se via como icônico? A confusão que citei previamente retorna, Nolan quer assumir a perspectiva do biografado ou a própria? Ele parece querer celebrar a genialidade do seu protagonista, mas esquecendo, quando convém, a quem este prestava serviço. Como comemorar o sucesso da bomba de modo tão irrestrito sabendo de suas consequências? Como criar suspense a partir de um fato tão dado, conhecido e estudado?

Claro, o filme se conclui com a expressão sombria de Oppenheimer, refletindo sobre as forças que lançou no mundo. O problema é o caminho que a narrativa tomou até chegar nesse ponto, que consegue colocar o personagem como vítima do próprio sucesso, ou como gênio absoluto. Outra biografia sobre um personagem genial, mas controverso, é Ferrari, de Michael Mann, que não deixa de admirar a figura do empresário, mas sem nunca esquecer o que o cerca: morte. Mann constrói a narrativa nessa dualidade, nunca deixando um lado se esquecer do outro. A vitória da corrida é entrecortada por cenas de um acidente, é um filme onde a tragédia sempre pesa, de uma forma ou outra.

Oppenheimer parece querer isolar essas coisas, o sucesso do cientista merece ser celebrado, e as consequências do seu êxito só existem para reforçar a nobreza do seu personagem. É um filme preso pela sua admiração, e só consegue enxergá-lo como um Grande Homem. Com seus conflitos, mas acima de tudo, grandioso. 

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