Estima-se que 161 mil haitianos vivem no Brasil. A maioria deles aqui chegou após um terremoto assolar o pequeno país insular da América Central em 2010. Segundo dados de 2016, a maioria destes imigrantes foi para São Paulo, e em segundo lugar na preferência dos imigrantes está o estado de Santa Catarina. A história de hoje é sobre um destes desterrados que escolheu – se é que há escolha na situação em que se encontram – Santa Catarina como novo lar e tocou corações por onde passou.
É na cidade de Antônio Carlos, Santa Catarina, que vive a idosa Bertha (Selma Egrei). Ela ouve no rádio acerca da vinda de haitianos para o estado e vê na televisão as dificuldades que eles estão enfrentando em seu próprio país. Com uma ideia na cabeça, ela vai numa noite a um abrigo de imigrantes e lá conhece Bastide (Diderot Senat), e o leva para começar a trabalhar em sua fazenda imediatamente. Ele, que era professor no seu país, precisará aprender a trabalhar no campo… e ensinará à senhora Bertha muito mais que alguns fatos sobre a independência do Haiti.
O filho de Bertha, Henrique (Léo Franco), se enfurece com a contratação de Bastide, considerando esta mais uma das loucuras da mãe. Ela é categórica: Henrique só está de birra porque Bastide é um homem negro. É também por causa da cor de sua pele que Bastide atrai olhares curiosos e julgadores tanto de adultos quanto de crianças. Em relação a isso, Bertha diz que “sempre foi assim, sempre vai ser assim”. Ela é diferente, mas sabe o que Bastide está passando porque seus antepassados passaram por coisa semelhante. Sim, ela compara a imigração alemã do século XX com a crise dos refugiados do século XXI.
Bastide é um homem bom demais. Ele dorme do lado de fora para não “ficar na mesma casa que madame”! Ele lava a louça sem que isso seja sua obrigação! Ele não sabe trabalhar no campo mas está disposto a aprender! Ele fica desorientado sem Bertha! Ele sofre xenofobia calado porque não há o que dizer! Bastide é um personagem que poderia ser melhor desenvolvido, para ser humano e falho como todos nós.
Bastide tem pesadelos com o terremoto e com toda a devastação por ele causada. Não é raro que pessoas com transtorno de estresse pós-traumático tenham pesadelos, pensamentos intrusivos sobre o evento traumático, problemas para dormir e irritabilidade, além de outros sintomas como comportamento autodestrutivo para tentar esquecer e um estado de alerta constante. Seria interessante ter visto Bastide confrontar estes sintomas e talvez até ser diagnosticado e tratado de seu transtorno.
A região em que se passa o filme, cercada de araucárias, é de colonização alemã, e Bertha conta para Bastide que muitas pessoas mantêm traições germânicas e falam um dialeto que se assemelha à língua alemã. Os primeiros imigrantes alemães chegaram ao Brasil há exatos duzentos anos: as primeiras 39 pessoas vindas de diversas regiões da Alemanha chegaram ao Rio Grande do Sul em julho de 1824, fugindo das guerras napoleônicas e dos longos meses de inverno, atraídos pela promessa de terras e fartura no Brasil.
Bastide fala a verdade inconveniente sobre o fluxo contrário, dos brasileiros no Haiti. A missão humanitária dos Capacetes Azuis da Organização das Nações Unidas no país foi capitaneada por brasileiros. Muitos brasileiros veem a beleza da missão, ignorando centenas de estupros cometidos por nossos soldados. Em muitos casos, mulheres haitianas aceitavam fazer sexo por um prato de comida e, quando se descobriam grávidas, viam os soldados, pais de seus filhos, voltarem para seus países de origem sem qualquer promessa de ajuda para o filho que iria nascer. Outro efeito danoso da missão da ONU foi a introdução do bacilo da cólera no Haiti, que matou dez mil pessoas.
Não restam dúvidas de que Selma Egrei seja uma ótima atriz. Em Diderot Senat ela encontra um parceiro de cena à altura, principalmente na sequência em que discutem quão custosa seria a contratação dele. Atuar em uma língua estrangeira é um grande desafio e por isso precisamos dar os parabéns para Diderot Senat, cujo talento já foi reconhecido: ele ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival Cine PE em Recife. Sobre a experiência e o reconhecimento, Senat declara:
“Interpretar esse personagem foi algo inexplicável. Primeiro porque desde criança eu assistia a filmes, participava de peças de teatro da minha igreja, mas nunca esperava me ver nas telas. Na minha cabeça, isso era algo gigante demais para mim, mas hoje estou percebendo que realmente tudo é possível. Ganhar um prêmio de melhor ator é uma loucura, pois, na minha infância, os exemplos de atores que eu tinha no Haiti eram todos norte-americanos. Esse prêmio é uma esperança para toda uma geração. Estou ansioso para que todas pessoas da minha cidade me vejam na tela, porque elas vão ver que podem sonhar sim, e que é possível, não importa de onde você venha.”
A montadora de “Porto Príncipe” é Natara Ney. Segundo o IMDb, sua carreira conta com 38 títulos como montadora, seis como diretora e sete como roteirista. Trabalhou como editora, roteirista e produtora no documentário “Divinas Divas” (2016) e entre seus trabalhos apenas na ilha de edição destaca-se um dos meus filmes favoritos, o docemente fantasioso “A Máquina” (2005).
O filme corria o sério risco de degringolar para o que chamamos de tropo do salvador branco. Isso não acontece em “Porto Príncipe” porque Bertha não salva Bastide, mas sim é Bastide quem inspira Bertha. Não se trata de uma história real, mas poderia ser. E poderia ser também muito mais: o foco em Bertha, e não em Bastide, empobrece a narrativa e nos priva de aprender mais do que simples fatos sobre a independência do Haiti. No final, é um filme de brancos para brancos, panfletando a necessidade de abraçar outras culturas sem contudo fazê-lo.