Um mapa quando dobrado e desdobrado deixa marcas, vincos que traçam itinerários turvos e falhos, mas que criam novas fronteiras para além do real, invisíveis ao real. É nessas frestas que a poeta, escritora e jornalista Fernanda Fatureto tece seus poemas, buscando “comunicar o incomunicável” em meio a essa cartografia agora sem limites definidos.
Exílio: Paisagens, publicado pela Editora Cas’a, em 2023, e com posfácio de Maraíza Labanca,é dividido em duas partes: Geografia turva e Irrupção da linguagem. Geografia turva nos recebe com um poema sem título, como todos os demais, mas que fala muito sobre o título do livro. A fronteira, o exílio, o limite, o ser forasteiro, o que vê de fora, o que vem de fora e forma paisagens marcadas pelo visto e pelo não visto.
“Exílio,
esse lugar sem nome.
Não se reconhece mais a paisagem
nem semelhança com outro país.
Um outro estado,
mesmo artifício da luz filtrada pela janela.
Cidade em trânsito,
sitiada pelo desconhecido rosto envelhecido da tarde.
Não há parâmetro para quem chega desapercebido pelo Atlântico,
ou por um outro oceano qualquer.
E aquela colina suspensa indica os sonhos que se dissipam
sobre a noite,
como outra noite qualquer
se não fosse obtusa essa estranha miragem.”
Cartografia sem fronteiras: Poemas-paisagem
O exílio traz esse olhar conhecido/desconhecido, mas que também funciona como forma de escrita, o exílio da própria língua. A língua que é pátria, que foge e que fica. A “barreira da língua” que aqui esgarça e é esgarçada.
Há um tom de busca, de mapeamento das frestas comentadas acima para que através delas deixe-se fluir a língua, a língua-rio, cujo percurso avança enquanto cria novas margens, novos afluentes e novas paisagens.
Paisagens que vão abrigar as palavras que fluíram por esse rio, no qual o pensamento é a verdadeira nascente, funcionando como um novelo a ser desfeito e refeito. É isso que Fernanda parece buscar ao longo de seus poemas-paisagem, desfazer esse emaranhado infinito que é o pensar e o sentir, tecendo, realmente, mas ciente de como o processo pode ser doloroso e tortuoso.
“Tatear a amplidão do gesto,
sentir a aspereza do tato –
aço, ferrugem, fornalha.
Revirar um hábito um abrigo,
saltar as folhas do vivido
seria reconhecer na fala
a única trajetória do que queima –
fogo contínuo na busca infinita
pela virtude de continuar tecendo
essa teia de proteção: a palavra,
essa que fala por aquela que cria,
tanto quanto arde.”
Queimar e arder. Ação e sensação. A escritura da autora perpassa por essa composição, conferindo, inclusive, um ar de cura à escrita poética.
“Encontrar o sentido do que se escreve –
um exercício resignado de medo e de cura
onde nada se cala e tudo é silêncio.”
O silêncio faz parte desse movimento, afinal “tudo o que rompe a fronteira da língua é cura”. Um silêncio que pulsa, que ocupa. Sendo que a escrita aqui em Exílio: Paisagens surge para aplacar esse medo, assim como pela necessidade do inconsciente que, à semelhança de Fernanda, busca frestas para ser linguagem.
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Corpo e memória
Algumas temáticas aparecem, como corpo e memória, mas a impressão é que esses demais tópicos estão sempre em função de um fluxo maior de expansão, de quebra de limites e de construção de uma escritura particular.
A localização desse corpo e dessa memória confere certa medida a essa movimentação ao estabelecer “uma odisseia no interior da casa” para depois retornar a ela, estabelecendo uma dinâmica de dualidade entre limitação e infinitude ao passo que a casa/poema funciona como um ponto de encontro e de retorno.
“Retorno à poesia como retorno à casa:
invadir o silêncio dos móveis,
recompor as teias e o pó,
revigorar o ar inaudível das palavras que ficaram suspensas no ar.
Esse trajeto do lar como origem primeira –
traço recortado da infância,
lugar de esquecimento e experiência.
Tudo na casa fala por si.”
Um movimento que remete à poesia de Ana Cristina Cesar:
“Tenho arrumado os livros.
Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra com ordem.
Ficam espaços vazios.
Hora em hora.
Não tenho te dito nada.
Ligo para os outros.
O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos reencontramos, cedo ou tarde.
Mas não sei mais quando
Cedo ou tarde reencontro – o ponto
de partida.”
(Ana Cristina Cesar, Poética. p. 304.)
Irrupção da linguagem
Já que falamos de uma referência, essa segunda parte do livro, Irrupção da linguagem, é um verdadeiro deleite nesse quesito. Mais parece uma conversa com a autora. Usando um formato de ensaios curtos, ela traz não só referências, como também reflexões sobre escrita, língua e linguagem que descortinam o seu processo de composição poética ao mesmo tempo em que honram aquelas que vieram antes, inclusive a própria Ana Cristina Cesar, mas não só. Maria Gabriela Llansol, Virgínia Woolf, Sylvia Plath, Alejandra Pizarnik, Susan Sontag e Cora Coralina também são citadas.
Mesmo o livro comportando uma potência na indeterminação, a começar pela ausência de títulos nos poemas, chegando a essa segunda parte fica mais claro o percurso que Fernanda traçou, das dobras do mapa às dobras da escrita.
“Escrever é sempre parte de um movimento maior, à deriva de imagens e palavras que nos acompanham como amuleto e espera – partida para um lugar remoto do inconsciente onde reinam o sonho e a metáfora (local sagrado e indecifrável) e que só pode ser lido em seu contexto de poema. Casa escritor tem sua partitura particular, transcrever esse local – materializá-lo – é tarefa de cada um que escreve. Como num ensaio de queda e redenção. O poema como resistência.”
Ao fim, me parece que Fernanda está no caminho de Llansol: “eu perdi o medo das palavras, vivo com elas, e constituo o meu corpo vivo e significante através delas” (Maria Gabriela Llansol, O sonho de que temos a linguagem. p. 15.).
Sobre a autora:
Fernanda Fatureto é poeta, escritora e jornalista. Autora de Exílio: Paisagens (Cas’a edições, 2023); Ensaios para a queda (Penalux, 2017) e Intimidade Inconfessável (Patuá, 2014). Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Participa do Caderno de Prosa e Poesia Subversa 2 (2019); das antologias Damas entre Verdes (Edições Senhoras Obscenas, 2018); 29 de Abril: o verso da violência (2015); Senhoras Obscenas (2016) e Subversa 2 (2016). Possui poemas em revistas literárias brasileiras como Germina, Mallarmargem e 7faces; nas revistas portuguesas Eufeme, InComunidade e Enfermaria 6; nas revistas espanholas Cuaderno Ático e Liberoamérica; na revista galega Palavra Comum e na revista da Guatemala El Cameleón.
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