“O sítio à beira da estrada”, de André Carvalho: um jogo de referências entre autor e leitor

Um passo à frente. E você não está mais no mesmo lugar“, dizia Chico Science. E esse lugar, sem você, já não é mais o mesmo, completaria Vilém Flusser. O pernambucano queria andar pelas cidades, pelas ruas do Brasil e do Mundo. O tcheco, tcheco-brasileiro, na verdade, queria se perder, jogar o mapa fora. Já o narrador de “O sítio à beira da estrada”, do professor, tradutor e revisor André Carvalho, queria chegar ao mar, mas não por um desejo íntimo e pessoal, queria apenas sair do sítio onde mora e seguir pela estrada afora, alcançar o fim, ou o começo. 

Um caminho que tem início com uma recusa. O narrador, então contido em sua “gaiola”, escondido na mediocridade e tendo nos livros a única forma de “colocar a vida para dentro”, acorda certa manhã maior do que realmente é, do tamanho de Gulliver em Lilliput, agigantando-se para além das paredes e do teto, ao menos essa era a sensação. Porém, algo tão espantoso e ao mesmo tempo tão maravilhoso acontece e ninguém ao redor dele parece notar ou se importar.

Lembrou-me o pai de um amigo. Ele morava em um sítio e costumava dizer que lá sempre tinha trabalho, sempre tinha algo a se fazer. Não é diferente no sítio à beira da estrada. Todos na família têm uma função, mas aqui, se você não cabe na que lhe foi designada, o único caminho é fazer da porta serventia da casa. É o que o nosso narrador faz. Ele larga a mão de Durkheim e lembra que estar adaptado demais a uma sociedade doente pode não ser tão saudável assim. Com a roupa do corpo e a chave da caminhonete em mãos, parte sem rumo, deixando para trás aquele lugar que não o comporta mais. 

No entanto, ele não vai só. A estrada passa pela vila da região e lá, ele encontra um dos poucos com os quais gosta de conversar, o boca-suja do Rocha, outro desajustado, outro que já tinha lido de tudo, mas ao contrário dele, visto também de tudo, menos o mar, aquele lugar por onde “cedo ou tarde, toda água passa”. Então, seguindo na direção apontada pelo braço do Rocha, lá vão eles. 

Como em uma espécie de Road Movie, a história se desenrola na estrada e no carro. Entre reflexões filosóficas, crises existenciais e muita referência musical, outros personagens entram e saem da narrativa através de encontros inusitados. Um delegado meio fanfarrão, um escritor que não lê, fantasmas de um passado glorioso, um padre cuja fé vem do silêncio de Deus e a sabedoria de nobres portugueses, teólogos mineiros, monges chineses e bigodudos alemães, um professor com ares de mensageiro, além de uma espécie de Ágora sobre rodas. 

Ao desenvolver uma narrativa repleta de movimentos físicos e mentais, André usa e abusa de sinônimos, adjetivos e estruturas que criam sequências fortes, como quando o narrador reflete sobre o paradoxo de um sítio ser à beira de uma estrada, logo no início do livro.

“A estrada tem um movimento, tem uma velocidade, tem uma flexibilidade que não se encontram no sítio. Aqui, espera-se o tempo, lento, ao passo parcimonioso do sol que se põe sonolento e ao passo prestigioso do sol que se levanta majestoso. Lá, o tempo passa veloz, em bofetadas de ar quente. Aqui, tudo tem hora. A cada dia basta o seu cuidado. A cada mês basta o seu trabalho. A cada estação basta o seu ritmo. Aqui, tudo é rígido. Sólido. Engessado. Preso. Encadeado. Lá, tudo venta, tudo passa, tudo vai, tudo dança, tudo vira, tudo muda.”

O sítio não é apenas rígido, ele é sólido, engessado, preso, encadeado. É uma estrutura que reforça uma ideia enquanto também dá vigor ao texto junto à repetição do “Aqui” e  do “A cada”.

Um outro exemplo desse tipo de disposição textual é quando o narrador pergunta se a mãe já havia experimentado a sensação de ser maior do que o lugar que ocupa.

“ ‘Claro que sim, não é nada novo. É só uma perda de tempo. Uma mera sensação. Um brinquedo sem utilidade, um passatempo, uma moda, uma dança, uma onda, uma música, um amor de estação, uma história em quadrinhos, um filme ou uma outra bobagem qualquer, como aqueles seus livros todos que só atrapalham o serviço e atravancam seu quarto. Um capricho. E estamos indo muito bem sem ele. Esqueça-o. Não há lugar para isso em nossos planos’ ”.

Um brinquedo, uma moda, uma dança, uma onda etc. Todos esses substantivos usados em sequência para descrever uma única coisa, uma única sensação e assim, enfatizar a pungência do diálogo em um momento de tensão, de ruptura, dando até uma cadência quase que musical. 

André também recorre a densos monólogos e conversas para lá de reflexivas, porém os entrecortando com diálogos super informais. O culto mescla-se aos palavrões e as blasfêmias, ou seja, há a erudição e o bom humor, algo que permeia todo o texto, inclusive. 

Em uma determinada passagem, por exemplo, Rocha reflete sobre Vílem Flusser e as catástrofes do ser humano. Ao fim, nosso narrador é tomado pela angústia de não saber a melhor saída para a humanidade além de começar tudo de novo, ao que Rocha responde: “ ‘Mas não é de derrubar o cu da bunda? Você começou a pensar! Isso mesmo, derreter a porra toda é algo impossível de se fazer. E, se não bastasse ser impossível, é inútil também.’ ”

A relação entre os dois personagens é algo bem divertido dentro da história. O narrador opera como um escudeiro e o Rocha entra por vezes como uma espécie de Dom Quixote que, diante do nosso medo de voar, do nosso medo do novo, chega a lutar contra moinhos de ventos em um “Woodstock” bem diferente daquele de 1969.  

Leia também: “Mil Placebos”, de Matheus Borges, e as crises da contemporaneidade

Aliás, as referências musicais são inúmeras e funcionam como um jogo entre autor e leitor. Inseridas nos monólogos e diálogos, por vezes elas são diretas e vem com o nome do cantor, da banda e tudo, outras vezes cabe a nós percebê-las e depois de um tempo, passamos até a procurá-las. O Pop e o Rock dominam, tanto o nacional quanto o internacional. Cazuza, Raul Seixas, Barão Vermelho, Rush, The Beatles, Eagles e outros. Inclusive, vale super a pena acompanhar a leitura da playlist criada pelo próprio autor.

O livro, em si, é um grande jogo de referências e não só musicais. Além de Vílem Flusser, outros pensadores são citados e trazidos para os momentos de intensa reflexão. Gustave Flaubert, Walter Benjamin, Nietzsche, Lewis Mumford, Susan Sontag, entre outros, também são chamados a participar, e talvez essa seja a grande sacada do livro. Todos esses jogos que envolvem autor, personagens e leitores.

Quanto à viagem do nosso narrador em busca do fim da estrada, ou do começo, pois o fim também pode ser o começo, ela funciona como uma metáfora. O percurso, os encontros, os desencontros e os desvios físicos transportam, na verdade, as mudanças internas do personagem que busca encontrar seu lugar no sítio, na estrada, no mundo, dentro de si mesmo. 

“ ‘ Quando disse que o objetivo de uma jornada não é chegar era disso que eu falava. O que fazemos para chegar, como nos viramos com as necessidades, como cuidamos um do outro, isso é o que importa. O resto é a viagem, é a memória, é uma história a mais para contar.’ ”

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Sobre o autor: 

André Carvalho é professor, tradutor e revisor, baterista diletante, pai de gêmeos e empresário fracassado, mestre pela PUC-SP (defendendo uma dissertação sobre o Pato Donald), bacharel pela ESPM. Como autor, lançou Imaginário e narrativas arquetípicas (Ed. Criativo, 2021) e traduziu Carl Barks e os quadrinhos Disney: desmascarando o mito da modernidade, de Thomas Andrae (Ed. Criativo, 2017), e Atuação para animadores, de Ed Hooks (no prelo). Gosta de ler, de comer pizza, de boa música e de animações dos Estúdios Pixar.

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