Lu Xun/鲁迅 (1881-1936) nasceu em uma família de intelectuais e até o fim da adolescência teve uma educação chinesa clássica. Contudo, indo na contramão do que se esperava, optou por seguir nos estudos sino-ocidentais, passando, inclusive, 7 anos estudando no Japão, país onde iniciou a Faculdade de Medicina. Porém, foi na literatura e não na medicina que ele viu o caminho de cura para a nação chinesa, que ele considerava apática diante das violências internas e externas. Um episódio tem destaque nesse período: enquanto assistia a uma reprodução de imagens da Guerra Russo-Japonesa (1904 -1905), cujos motivos incluíam a disputa por territórios chineses, como a Manchúria, ele viu seus colegas japoneses rirem durante a execução de cidadãos chineses diante de outros cidadãos chineses que observavam a cena.
“as palavras não são ornamentos deleitosos, mas instrumentos cirúrgicos.”
De volta à China, lecionou em diversas escolas e universidades, e chegou a ter posições de destaque no Ministério da Educação antes de se dedicar apenas à escrita e à literatura. Envolveu-se em movimentos pró-democracia e fundou a Liga dos Escritores da Esquerda Chinesa. Foi um trajeto de muitas decepções e frustrações, mas mesmo diante do pessimismo que salta aos olhos é possível ver um homem dedicado a uma causa. Hoje, é um autor canônico e leitura obrigatória no currículo educacional chinês.
Conheça três livros do autor traduzidos direto do chinês para o português e publicados aqui no Brasil:
“Flores matinais colhidas ao entardecer”, Lu Xun (鲁迅). Tradução Yu Pin Fang. Editora Unicamp, 2021.
”Flores matinais colhidas ao entardecer” (朝花夕拾) é uma edição bilíngue que reúne textos em prosa do autor que é considerado o pai da literatura moderna chinesa, Lu Xun, e entender quem nós éramos para entender quem nós somos não se aplica apenas a um nível individual. A forma como pensamos e criamos, coletivamente, inclusive, é influenciada por nossas raízes, por aqueles que vieram antes.
Lu Xun defendia fervorosamente o uso do chinês vernacular, ou seja, a língua falada na linguagem literária, algo que fugia do protocolar na época, a escrita no chinês clássico e a qual a maior parte da população não tinha acesso. Sendo assim, o fato dele pensar a literatura como instrumento de mudanças ia totalmente de encontro a essa limitação que persistia mesmo após a derrubada da Dinastia Qing e o estabelecimento da República, em 1911. A sensação era a de que reformar não foi o suficiente, era preciso mais e em alguns dos seus pares ele não encontrou esse mais que podemos chamar de revolução.
Antes de ler “Flores matinais colhidas ao entardecer”, escrito em 1926, peguei um conto do autor, “A madman’s diary/O diário de um louco”, de 1911. No texto, em forma de diário, logo após ler os textos clássicos de Confúcio, o narrador-personagem acredita estar envolto em uma conspiração para comê-lo, uma metáfora que usa o canibalismo para traçar uma crítica ao velho que se recusa a abrir espaço para o novo.
O mesmo embate é perpetuado ao longo dos 12 textos que compõe as memórias do autor, que usando doses cavalares de sarcasmo com pitadas de rancor rebate, questiona e ataca normas, instituições e inimigos pessoais.
“Quando meus escritos são publicados, raramente agradam a certas pessoas, mas com frequência tocam em suas feridas.”
Os textos retomam sua infância e juventude, e trazem inúmeras referências à obras que faziam parte da formação dos estudantes chineses, além de fatos históricos, aspectos culturais e folclóricos que sem as notas de rodapé explicativas eu certamente perderia. As notas, por sinal, em conjunto com a apresentação e a introdução, merecem destaque por seu trabalho primoroso. Isso sem falarmos da tradução, por Yu Pin Fang. Lu Xun é muito sarcástico, o que eu amei, e conseguir passar esses tons e nuances foi essencial para que eu alcançasse toda a potência da escrita dele. Sem todo esse suporte talvez não fosse possível captar todas as indiretas, ironias e reflexões dessa figura importantíssima na formação da China moderna.
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Eu realmente senti que o livro nos coloca junto ao autor para que possamos compreender, ou ao menos vislumbrar, o que foi o período final da dinastia Qing, que governava a China desde 1644, e início da República ao mesmo tempo em que o humaniza, mostra suas dores, frustrações, motivações. Há um tom de resignação, mas também de cansaço.
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“O diário de um louco: contos completos de Lu Xun”, Lu Xun (鲁迅). Tradução de Beatriz Henriques, Cesar Matiusso, Marcelo Medeiros, Marina Silva e Pedro Cabral. Carambaia, 2022.
Nessa edição super caprichada, temos os contos desse autor que me conquistou logo no primeiro contato, quando li o conto “A madman’s diary/O diário de um louco”, que também compõe a coleção. A forma como ele trabalha as metáforas, a acidez, a ironia e doses até de algo aproximado ao terror impressionam pela maturidade de um texto que é sua primeira publicação.
“Todos aqueles caracteres no livro e todas as palavras que o fazendeiro disse me encaravam agressivos e riam de mim.
E eu não sou humano? Eles querem a minha carne!”
Muitas das críticas que escorrem pelas entrelinhas dessa história inaugural, tal qual o hanzi 吃 (comer) nos textos clássicos de Confúcio, permeiam toda sua obra. Críticas a uma sociedade que ele acreditava estar devorando a si mesma e a seus indivíduos, em uma espécie de “antropofagia social”, como bem destaca a professora Ho Yeh Chia no posfácio.
Por falar em posfácio, que agrega informações sobre o contexto histórico e cultural, ao longo do livro, também temos notas de rodapé em momentos pontuais, mas cruciais, visto que nós, leitores brasileiros, no geral sabemos muito pouco sobre a China, ainda mais se levarmos em conta o momento extremamente complexo e conturbado que autor viveu. Nesse ponto, fico feliz de ter lido suas memórias: “Flores matinais colhidas ao entardecer”, publicado pela Unicamp e comentado acima, pois me deu uma bagagem muito boa, inclusive, para fazer uma leitura ainda mais robusta dessa coletânea da Carambaia.
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“Ervas Daninhas”, Lu Xun (鲁迅). Tradução Calebe Guerra. Aboio, 2022.
Elegantíssima essa edição bilíngue que traz 23 poemas em prosa escritos pelo autor entre 1924 e 1926, um período de bastante instabilidade política e social na China, com o início da Guerra Civil, e de isolamento do autor, em Pequim. Então se a melancolia é um traço nos contos e nas memórias do escritor, aqui ela serve de guia. São textos mais experimentais, ariscos até, no sentido de que não se permitem domar, ou seja, livres. É possível sentir as mágoas, as inquietações e o peso no coração.
E esse sentir só foi possível pela tradução. Gosto de dizer que uma boa tradução é aquela capaz de conferir ao leitor do texto alvo uma experiência o mais próxima possível da que o leitor do texto fonte teve. O Calebe conseguiu fazer isso, respeitando os desvios, as repetições, os estranhamentos. Um trabalho primoroso.
“O desespero é vaidade. A esperança também.
Se eu tivesse que viver sem propósitos por entre essa “vaidade” na qual não há nem luz e nem escuridão, ainda continuaria buscando a juventude desolada e intangível, mesmo que só a encontre fora de mim. Pois se a juventude de fora desaparecer, então secarão meus últimos anos.”
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Lu Xun era um homem que via a literatura como missão e as palavras como instrumento de transformação, de revolução. Todas essas traduções para o português certamente vêm em um excelente momento.