Ao começar um novo livro é comum acionarmos nossa biblioteca interna, aquela formada por todas as leituras que vieram antes, e assim, traçarmos conexões com todos os textos que nos compõe. Quando li Terráqueos, da Sayaka Murata, não foi diferente e acabei estabelecendo elos com A Vegetariana, da Han Kang, pois ambas causam um certo estranhamento com pitadas de choque e até horror. Há também a violência de gênero como catalisador para uma busca pela desumanização, no sentido de transgredir o humano que tanto violentou as personagens de ambos os livros ao longo de suas vidas.
Natsuki, protagonista e narradora de Terráqueos, desde pequena sentia-se deslocada na “Fábrica de gente”, uma sociedade na qual devemos nos sujeitar ao ciclo nascer, produzir e reproduzir enquanto tenta-se sobreviver.

“Minha cidade era uma enorme fileira de ninhos e uma fábrica de fazer humanos. Ali, eu era uma ferramenta em dois sentidos.
Primeiro, tinha de me esforçar nos estudos, para me tornar uma boa ferramenta de trabalho.
Segundo, tinha de me esforçar como menina, para poder me tornar um bom órgão reprodutor da cidade.
Eu desconfiava que fracassaria em ambos.”
Sem acolhimento dentro da própria família, sofrendo os mais diversos abusos, inclusive sexual, e com medo de ser expulsa da Fábrica, Natsuki se agarra a ideia de que ela e seu bichinho de pelúcia mágico, Piyut, são extraterrestres do planeta Powapipinpobopia. Contudo, diante de sucessivas falhas em se ajustar à essa sociedade opressora, ela, seu primo Yuu e seu marido Tomoya, também deslocados nesse mundo, decidem abraçar de vez sua natureza extraterrestre e rompem com as leis terráqueas, e apenas ao assumir essa forma e entregar-se ao absurdo Natsuki se vê dona de si pela primeira vez.
“Minha boca, que eu supunha que ficaria quebrada pelo resto da vida, havia voltado a ser minha.”
Já Yeonghye, protagonista de A Vegetariana, sequer tem voz em sua própria história, pois o livro é narrado primeiro pelo marido, em seguida pelo cunhado, e por fim pela irmã. A espiral de loucura na qual os acontecimentos se desenrolam começam com sonhos, na verdade, pesadelos, cheios de sangue, pedaços de carne e morte que passam a assombrar Yeonghye e a levam a tomar uma decisão: não comer mais carne. Mas ao passo que as narrativas atravessam a personagem fica nítido que essa espiral é resultado não de um único evento, mas de um histórico de silenciamento e submissão, primeiro ao pai, à família, depois ao marido e à sociedade como um todo, pois ela dita em quais espaços cabe uma mulher e como ela deve ocupar esses espaços concedidos. Há aqui uma vida sem controle sequer do próprio corpo.

“Seu corpo é a única coisa à qual você pode fazer mal. É a única coisa com a qual você pode fazer o que quiser. Mas nem isso te deixam fazer.”
À determinação de não comer carne soma-se uma recusa da violência como um todo, afastando-a, assim, do humano enquanto animal. Yeonghye busca se afastar do animalesco, do violento, e unir-se ao mundo vegetal, ao pacífico e desta forma, transgredir os padrões pré-estabelecidos.
“Não sou mais um animal, mana (…) Não preciso mais comer. Consigo viver assim. Só preciso tomar sol. “
A palavra transgredir é muito importante pois inicialmente eu via muito a transmutação em ambos os livros, mas faltava algo, algo que foi nomeado quando li Terráqueos para o Curso “Solidão e Transgressão: Literatura de Mulheres no Japão Contemporâneo”, com a Profa. Aparecida Vilaça. Foi ali e revisitando A Vegetariana pela terceira vez que a ideia para esse texto surgiu. Há alguns anos tenho lido mais autores, mas principalmente, autoras asiáticas e a força da tradição e do patriarcado é uma marca em diversos títulos. As mulheres constantemente em posições de submissão, muito ligadas à casa, aos serviços domésticos e à família, além do casamento e maternidade compulsórios, temas também recorrentes, principalmente dentre escritoras japonesas.
Japão e Coreia do Sul são reconhecidos pelo seu desenvolvimento econômico e tecnológico, mas ocupam respectivamente a posição 120 e 102 no Índice Internacional de Paridade de Gênero de 2021. E é aqui que, mesmo em realidades distintas, as personagens da autora japonesa e da autora sul-coreana se encontram: na desigualdade de gênero, na submissão, e na violência. São personagens que só através da transmutação se firmaram como indivíduos, mesmo que não humanos.
Referências:
Terráqueos, Sayaka Murata. Tradução Rita Kohl. Estação Liberdade, 2021;
A Vegetariana, Han Kang. Tradução Jae Hyung Woo. Todavia, 2018;
Índice Internacional de Paridade de Gênero de 2021;
Um feminismo deslocado, por Aparecida Vilaça;
O papel da mulher na sociedade sul-coreana;