Elisa Lucinda é atriz, jornalista, cantora, escritora, poetisa brasileira. Recebeu o Troféu Raça Negra 2010, em sua oitava edição, na categoria Teatro. Em 2020, foi indicada como Melhor Atriz Coadjuvante e ganhou o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Gramado, pelo conjunto de obra.
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Além de poemas, Elisa também escreve romance, contos, crônicas e literatura infantil. Com mais de 17 livros publicados, estão entre alguns títulos: A fúria da beleza (2006), A dona da festa (2011), Vozes guardadas (2016), Livro do avesso (2019), Quem me leva para passear (2021), entre outros. Suas temáticas, em geral, abordam as questões sociais como a condição feminina, a luta contra o racismo e o combate à desigualdade e às formas de opressão.
Confira alguns poemas:
Amanhecimento
De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada…
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.
A Ilha
Na solidão da existência,
nado firma na batida das águas,
corpo revolto à mercê da decisão das ondas,
vou destilando coragem no desespero das braçadas.
É noite.
Ainda bem que os versos são claros,
me ancoram, me falam, me salvam,
me beijam na boca o beijo longo da salvação,
me devolvem o ar, a vida, a trilha.
O poema é para mim terra firme,
como é, para o náufrago, a ilha.
Poemeto de Amor ao Próximo
Me deixa em paz.
Deixe o meu, o dele, o dos outros em paz!
Qualé rapaz, o que é que você tem com isso?
Por que lhe incomoda o tamanho da minha saia?
Se eu sou índia, se sou negra ou branca,
se eu como com a mão ou com a colher,
se cadeirante, nordestino, dissonante,
se eu gosto de homem ou de mulher,
se eu não sou como você quer?
Não sei por que lhe aborrece
a liberdade amorosa dos seres ao seu redor.
Não sei por que lhe ofende mais
uma pessoa amada do que uma pessoa armada!?
Por que lhe insulta mais
quem de verdade ama do que quem lhe engana?
Dizem que vemos o que somos, por isso é bom que se investigue:
o que é que há por trás do seu espanto,
do seu escândalo, do seu incômodo
em ver o romance ardente como o de todo mundo,
nada demais, só que entre seres iguais?
Cada um sabe o que faz
com seus membros,
proeminências,
seus orifícios,
seus desejos,
seus interstícios.
Cada um sabe o que faz,
me deixe em paz.
Plante a paz.
Esta guerra que não se denomina
mas que mata tantos humanos, estes inteligentes animais,
é um verdadeiro terror urbano e ninguém aguenta mais.
“Conhece-te a ti mesmo”
este continua sendo o segredo que não nos trai.
Então, ouça o meu conselho
deixe que o sexo alheio seja assunto de cada eu,
e, pelo amor de deus,
vá cuidar do seu.
Aviso da lua que menstrua
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua…
Imagine uma cachoeira às avessas:
Cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
Às vezes parece erva, parece hera
Cuidado com essa gente que gera
Essa gente que se metamorfoseia
Metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
Mas é outro lugar, aí é que está:
Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
Que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
Transforma fato em elemento
A tudo refoga, ferve, frita
Ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
É que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
É que tô falando na “vera”
Conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
Delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
Ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
Já se alcança a “cidade secreta”
A atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
Cai na condição de ser displicente
Diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
Que a mulher extrai filosofando
Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso
Julgando a arte do almoço: eca!…
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
Então esquece de morder devagar
Esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
Chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
Vaca é sua mãe. de leite.
Vaca e galinha…
Ora, não ofende. enaltece, elogia:
Comparando rainha com rainha
Óvulo, ovo e leite
Pensando que está agredindo
Que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
Ele
Já começa a beijar o meu pescoço
com sua boca meio gelada meio doce,
já começa a abrir-me seus braços
como se meu namorado fosse,
já começa a beijar a minha mão,
a morder-me devagar os dedos,
já começa a afugentar-me os medos
e dar cetim de pijama aos meus segredos.
Todo ano é assim:
vem ele com seus cajás, suas oferendas, suas quaresmeiras,
vem ele disposto a quebrar meus galhos
e a varrer minhas folhas secas.
Já começa a soprar minha nuca
com sua temperatura de macho,
já começa a acender meu facho
e dar frescor às minhas clareiras.
Já vem ele chegando com sua luz sem fronteiras,
seu discurso sedutor de renovação,
suas palavras coloridas,
e eu estou na sua mão.
Todo ano é assim:
mancomunado com o vento, seu moleque de recados,
esse meu amante sedento alvoroça-me os cabelos,
levanta-me a saia, beija meus pés,
lábios frios e língua quente,
calça minhas meias delicadamente
e muda a seu gosto a moda de minhas gavetas!
É ele agora o dono de meus cadernos, meu verso, minha tela,
meu jogo e minhas varetas.
Parece Deus, posto que está no céu, na terra,
nas inúmeras paisagens,
na nitidez dos dias, no arcabouço da poesia,
dentro e fora dos meus vestidos,
na minha cama, nos meus sentidos.
Todo ano é assim:
já começa a me amar esse atrevido,
meu charmoso cavalheiro, o belo Outono,
meu preferido.
O Poema do Semelhante
O Deus da parecença
O que nos costura em igualdade
O que nos papel-carboniza em sentimento
O que nos pluraliza
O que nos banaliza por baixo e por dentro
Foi este Deus que deu destino aos meus versos
Foi ele quem arrancou deles a roupa de indivíduo
E deu-lhes outra de indivíduo ainda maior
Embora mais justa
Me assusta e acalma
Ser portadora de várias almas
De um só som comum eco
Ser reverberante
Espelho, semelhante
Ser a boca
Ser a dona da palavra sem dono
De tanto dono ela que tem
Esse Deus sabe que a palavra “alguém”
É apenas o singular da palavra “multidão”
Eee mundão
Todo mundo beija
Todo mundo deseja
Todo mundo almeja
Todo mundo chora
Alguns por dentro
Alguns por fora
Alguém sempre chega
Alguém sempre demora
Um Deus que cuida do não-desperdício dos poetas
Deu-me essa festa de similitude
Bateu-me no peito do meu amigo
Encostou-me a ele
Em atitude de verso beijo e umbigos
Extirpou de mim o exclusivo:
A solidão da bravura
A solidão do medo
A solidão da usura
A solidão da coragem
A solidão da bobagem
A solidão da virtude
A solidão da viagem
A solidão do erro
A solidão do sexo
A solidão do zelo
A solidão do nexo
Esse Deus soprador de carmas
Deu de me fazer…
Parecida
Aparecida
Santa
Puta
Criança
Deu de me fazer diferente
Pra que eu provasse da alegria
De ser igual a toda gente
Esse Deus deu coletivo ao meu particular
Sem eu nem reclamar
Foi ele, o Deus da par-essência
O Deus da essência par
Olha, não fosse a inteligência da semelhança
Seria só o meu amor
Seria só a minha dor
Bobinha e sem bonança
Seria sozinha minha esperança.