Explorando temas como a erosão das instituições, pós-verdade e disputas de narrativas, os contos de “Onde as verdades nascem” transitam entre o real e o irreal para questionar a normalização do espanto cotidiano
A personagem Cassandra, que espera o leitor nas primeiras páginas de “Onde as verdades nascem” (132 páginas, editora Patuá), obra de estreia do paulista Júlio César Bernardes (@jcbernardes), enuncia um traço que acompanhará a obra até o final: o mistério. Apesar da alusão à tragédia grega, em que Cassandra é amaldiçoada a prever o futuro sem que jamais acreditem em suas palavras, o conto que abre o livro explora um contorno bastante distinto: ao situá-lo em uma cidadezinha interiorana, cenário que percorre o restante da obra, o autor coloca em perspectiva a temática do Brasil Profundo, muito explorada por autores como João Guimarães Rosa.
Meia hora depois, mais de vinte milhões de pessoas já tinham assistido, em quarenta e seis países, aos vídeos do homem que habitava o esqueleto de uma baleia azul num recanto do litoral brasileiro. E o lugar, conhecido pela tranquilidade, aparecia, a cada foto de Josué publicada nas redes sociais, mais e mais abarrotado de gente.
Trecho do livro “Onde as verdades nascem”
“Onde as verdades nascem” é composto por nove contos, cada um com uma história única, sem relação com as demais. A forma de contar também muda: embora a maior parte dos textos seja narrada em terceira pessoa, alguns dos contos também trazem narradores-personagens.
A obra se destaca pela diversidade de personagens e pelos diálogos entre imaginários individuais e coletivos, que ocorrem sobretudo quando universos esotéricos, habitados por cartomantes, leitores de sonhos, gurus e benzedeiras, contrastam com problemas mundanos, como a influência de famílias tradicionais sobre o poder público e a impotência frente a uma burocracia por vezes ineficaz. Entre esses extremos, pessoas comuns são, por acaso ou destino, arremessadas para um lugar entre o crível e o que foge à lógica, limiar que ganha materialidade na medida em que os personagens são construídos de maneira complexa, sem maniqueísmos.
“Os primeiros contos que escrevi no mesmo estilo dos que compõem o livro surgiram do meu divertimento com o fato de que amigos aqui de São Paulo nunca sabiam no que acreditar quando eu contava histórias do interior. Juravam que era mentira algo que lhes parecia absurdo e que para mim, no entanto, era banal, e tomavam por verdade, sérios e surpresos, o que eu inventava sem pudor”, relata o autor
Nesse contexto, os temas centrais de “Onde as verdades nascem”, para o autor, são a erosão das instituições, pós-verdade e disputas de narrativas. “Em vez de escrever contos que fossem só anedóticos, resolvi explorar o pitoresco como recurso para argumentar que a ruptura apontada das instituições é a realidade perene e longeva da maior parte do país”, ressalta o autor, e segue: “O espanto se dá porque uma meia dúzia de cidades que se julgavam mais avançadas se viram sujeitas às mesmas forças que regem o interior, do qual tentavam se distinguir”.
Sobre o autor
Júlio César Bernardes nasceu em 1993, em Jacareí/SP, há cerca de 80 km da capital paulista. É mestre em Sociologia, tendo graduação também nas áreas de Linguística e Relações Internacionais, todas pela Universidade de São Paulo. Além de escritor, trabalha como gerente de análise de dados digitais e consultor de advocacy.
A formação acadêmica, aliada à bagagem sócio-cultural e à experiência profissional do escritor, moldaram inevitavelmente sua forma de construir as narrativas em “Onde as verdades nascem”. Sua família é da pequena cidade de Palestina, a oeste do estado de São Paulo. O autor vive na capital há cerca de 10 anos, tendo passado por praticamente todas as regiões do país antes de se estabelecer, mudança motivada pela faculdade.