Resenha de Coisas que não quero saber, de Deborah Levy, primeiro volume da trilogia publicada no Brasil pela Autêntica Contemporânea
A boa literatura é igual a uma boa cebola: tem várias camadas e, dependendo do olho, pode fazer chorar ou doer. As camadas são importantes não porque a literatura precisa de profundidade, pelo contrário, já sabemos que muitas vezes o mais profundo é a pele, mas porque uma potencialidade que não pode ser desperdiçada na arte é o nó no óbvio da língua. Por outro lado, a literatura é esse mobilizador de afetos que, via de regra, mexe com o olho de quem olha.
Recebi aqui em casa da Autêntica Contemporânea a trilogia da Deborah Levy, escritora sul-africana que vem chamando atenção na literatura inglesa, país onde está radicada. Acabei de ler o primeiro volume e foi com grata surpresa que encontrei uma medida exata de um jogo contemporâneo nem sempre bem jogado entre biografia, autobiografia, autoficcção e ficção.
Diferentemente de Annie Ernaux, a quem já dei duas chances e pretendo correr atrás da terceira, Deborah Levy não parte de uma escrita pelo esgotamento, mas pela contingência que vai regendo a história. Neste primeiro volume chamado “Coisas que não quero saber”, ela parte da pergunta de George Orwell no ensaio “Por que escrevo” para tentar responder a si própria porque ela escreve. E autobiografia ou autoficção nasce deste desejo de tentar descobrir este mistério e isso, por si só, já mobiliza a gente leitor a acompanhar sua vida com ela.
Levy conta sobre sua infância em Joanesburgo, na África do Sul, em uma família branca abastada em um país em pleno apartheid, mas cujo pai era um bravo militante anti-apartheid. Logo de cara, ela descreve um país que em que:
“os brancos tinham medo dos negros porque lhes faziam maldades. Se você faz uma maldade com alguém, é porque não se sente seguro. E se não se sente seguro, não se sente normal.”
Com esta formulação, ela tenta nos explicar como aparentava a política de apertheid para ela nos primeiros anos de vida. Os brancos, na busca desta pretensa normalidade viam os negros como “impedimentos”: era apenas no exercício de poder racista que os brancos poderiam se sentir normais, mas era justamente este poder que lhes dava o medo de jamais poder serem o que desejavam. Um impasse que nos coloca diante, de um lado, da reprodução de gestos da política racista e, de outro lado, do esforço constante de desfazimento dessa política. Logo nas primeiras páginas, por exemplo, Levy vê seu pai ser levado pela polícia. Depois ela irá saber que ele havia sido preso justamente por sua militância.
Assim, ela é enviada para ser criada por uma madrinha, por medidas de segurança familiar, mas essa madrinha possui uma metodologia de educação muito mais rígida, o que se desdobra num outro modelo de formação da autora: de uma família de liberdades antirracista, ainda que num país cindido, para uma família de restrições ainda maiores. Em seguida, para aumentar este aprofundamento na tradição da África do Sul, Levy é enviada para um colégio de freiras.
Diante deste mudo que não parou de mudar diante de Deborah Levy, ela vai nos contando a história da própria África do Sul através de sua biografia. Após sua ida para Inglaterra, por exemplo, ela se coloca pela primeira vez sendo ela a deslocada, a exilada, tanto que para se fixar na terra, ela escrevia nos papéis que encontrava a palavra, em maiúscula: INGLATERRA. Em determinado momento, escreve:
Inglaterra era uma palavra emocionante de escrever. Minha mãe disse que estávamos no exílio e que um dia voltaríamos ao país onde nasci. A ideia de que eu vivia do Exílio e não na Inglaterra me aterrorizava. (…)
E, sobre o exílio, concluía, trazendo Andy Warhol:
“Não poso me desintegrar porque nunca me integrei.”
Um potente jogo de linguagem, fazendo a biografia modular a história enquanto modula a memória e a ficção. Deborah Levy é uma das potências literárias do presente, talvez até mais do que as mais reconhecidas do gênero. Por isso, aqui, neste breve texto, eu faço meu papel de trazê-la à luz.
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