Editora: Autografia
Ano: 2021
Páginas: 88
“A gente é sempre vítima do pecado dos outros”. Escrever sobre o próprio tempo é quase sempre uma armadilha, porque o presente é quase como a imagem da figura divina: uma transparência, uma figura que se oculta, mas se faz presente através da imaginação dos outros. E é por isso que somos vítimas do pecado dos outros porque, se a gente é, no fim das contas, a imagem que se projeta da gente nos outros, seremos sempre vítimas daquilo que os outros pensam, fazem e são.

Em “Um gato no país dos evangélicos: uma sátira da sociedade em que vivemos”, Gonzalo Dávila Bolliger se arrisca a escrever sobre o nosso tempo com a urgência de quem ainda o está vivendo. Para isso, constrói o curioso artifício de deslocar a narrativa para um gato, na verdade dois – Laura e Teodoro –, que observam, pensam, criticam e escrevem sobre essa espécie de palácio onde mora a família de um pastor evangélico e todo seu clã familiar, de funcionários e escravizados.
“E de repente, que horrível” Um líquido vermelho começou a sair do pulso dela como um jato” Um vermelho bem forte no meio de um quarto todo branco!”
O que traz a história à tona é a morte – na verdade o suicídio – de uma das filhas deste pastor, que dá start a uma onda de mortes em torno da família e à percepção de um dos gatos que acredita ter visto o tal pastor transformando os mortos em múmias. E aí, será verdade? Mas por que ele faria isso? O que essa família tanto tenta esconder?
Podemos destacar na narrativa de Gonzalo um toque de iconoclastia diante de sua sátira que está presente em todas as camadas da história, começando pelo sugestivo nome do pastor Edir Ismael Malafossos, junção perfeita entre Edir Macedo e Silas Malafaia, e o nome da própria igreja, “Bombando Jesus no Coração”, tão absurda quanto possível em nosso mundo contemporâneo inexplicável.
O autor monta um quadro que vai sendo pintado aos poucos através do cenário: uma mansão quase infinita, cheia de quartos com nomes distintos, como “O Quarto dos Espelhos” e o curioso quarto “Porque a fudição deve ser proibida”. Entre o riso e o desespero, não porque a história seja absurda, mas porque a realidade a qual ela se espelha poderia ser tão absurda quanto, vemos um espaço construído não muito diferentemente dos espaços modernos descritos por Foucault:
“há um zoológico, para não dizer um safári. Há torres de vigilância. Prisões. Plantações de vinho. Milhares de cabeças de gado. Depósito de documentos de todos os escravos. Casinholas onde se fabricam milhões de panfletos de igreja. E muito mais, muito mais…”

O que eu achei mais interessante da novela é o domínio de Gonzalo Dávila Bolliger em escrever a partir de referências que são sugeridas e atualizadas em “Um gato no país dos evangélicos: uma sátira da sociedade em que vivemos”. A principal delas, a meu ver, é a brancura que vai tomando os espaços e os corpos das personagens da sátira. Como numa parte do meio evangélico é muito comum um discurso em torno da “pureza” e da tentativa de se evitar o pecado a todo custo – mesmo que o pecado seja sempre o do outro e, por consequência, daquele que nos torna todos vítimas destes pecados – Gonzalo recorre a uma espécie de brancura que aparece nos momentos críticos das personagens. Este branco que pode fazer referência à cegueira branca de Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, inverte a equação da pureza: o branco que purifica é o mesmo que mata.
Além disso, podemos ver na novela uma série de referências às narrativas distópicas de George Orwell, desde 1984, como o Big Brother “metade gospel e metade campestre” e a Revolução dos Bichos, na “cor da pele que é de porco total; (…) gordinho, rechonchudo, bochechudo”.
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Desesperado, na busca da limpeza de sua família, o pastor Edir Malafossos busca as saídas mais inacreditáveis: sacrificar empregados, escravizados, fuzilar pessoas aleatoriamente dentro da mansão, tudo isso para que os pecados – dos outros, sempre, nunca o dele e da família dele:
“Não vou ligar pra polícia. Você também foi vítima do pecado dos outros. A gente sempre é vítima dos pecados dos outros. Pra começar por Cristo, sim, a gente pedregulho é como Cristo. Os servos, sabe, nós lhe damos de comer e eles continuam pecando! Você já foi servo e, cá pra nós, eu também. Mas nunca naquelas épocas cuspimos nos pratos dos nossos amos!”
Para conhecer uma história tão ou mais surreal do que a nossa realidade atual, se é que isso é possível, conheça “Um gato no país dos evangélicos: uma sátira da sociedade em que vivemos”. Talvez a realidade seja dura demais e a melhor forma seja entendermos esse mundo através de uma história divertida, mas também dura, desse jovem e promissor escritor, Gonzalo Dávila Bolliger
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