Na orelha do livro de poemas “Agora e na hora de nossa morte”, do grande amigo João G. Junior, Ramon Nunes Mello comenta sobre a trajetória de João através do que ele chama de um “indivíduo político/poético”. Isto que parece óbvio, nem sempre é claro, porque apesar de TUDO ser político, muitas vezes esquecemos que não é QUALQUER COISA que é política. Dessa forma, a poesia de João estar entre o político e o poético tem mais a ver com trânsito do que com lugar, com movimento do que com uma bandeira fincada numa ideia.
Neste novo livro de João, chamado “Agora e na hora de nossa morte” e publicado pela Urutau, João Junior, conta Ramon, escreve apesar das ruínas, propondo-se “a dançar e cantar – com a certeza da proteção e dos ensinos de seus ancestrais, e do constante diálogo com os eleitos faróis de seu caminhar entre as pedras: Roberto Piva, Linn da Quebrada, Carlos de Assumpção, Grada Kilomba, bell hooks, entre tantos outros, invocados diretamente em epígrafes ou nas entrelinhas de seus versos.”
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O NotaTerapia, amigo e fã de João, através de mm, Luiz Ribeiro, fez uma entrevista com o poeta. Confira:
LUIZ: João, querido, primeiro de tudo eu quero dizer da alegria que é ver você escrevendo, publicando, anotando a vida. Gosto muito de você desde sempre e me sinto orgulhoso de ver você cada vez mais virando palavras, poemas e, como você mesmo diz, corpo no mundo.
Eu queria começar essa entrevista com meu poema preferido do seu novo livro “Agora e na Hora de Nossa Morte”. Digo desde já que não estou dizendo que é o melhor porque tem muitos sensacionais, mas meu preferido. É o “solidão” que diz: “todos eles elogiaram / a minha cor / o meu cabelo / o meu beijo / mas sumiram / no dia seguinte”. Existem tantas camadas e é tão triste que gostaria que você pudesse falar um pouco mais de todas as vivências, histórias e estruturas sociais que você traduziu em tão poucas linhas.
JOÃO: Luiz, querido, espero que saiba que a alegria é minha por estar aqui, trocando com você, conversando sobre o meu novo livro, e me é muito gratificante saber que gostou dos poemas. Fico muito contente em saber do carinho recíproco que temos um pelo outro e grato pelo espaço! Agora, em relação à sua pergunta, sim, o poema “Solidão”, que destacou, é simples, pequeno, singelo, mas tem muitas camadas.
É meio que um tapa-na-cara, né? Sinto isso com ele, nas suas poucas linhas… Eu sou um homem negro de pele clara e a minha vida toda fui identificado como “moreno” ou “pardo”, em tentativas vãs de me embranquecer. Somente após os 22 anos que comecei a reconhecer a negritude em mim e me identificar como um homem negro. O racismo em nossa sociedade é tão penetrante que nos impede, enquanto pessoas negras, que nos reconheçamos assim. E quando percebi isso, quando me percebi negro, consegui explicar, para mim, perguntas para as quais eu nunca havia encontrado resposta: por que adoram ficar comigo em festas, mas nunca me ligam depois? Ou ainda: por que o cara que não queria namorar comigo apareceu namorando com outro logo após se afastar de mim?
Durante anos ressoou em minha cabeça os elogios que recebia, simultaneamente aos questionamentos relativos ao preterimento vivido – e olha que eu não tenho a pele retinta. De fato passei por diversas experiências afetivas e sexuais nas quais o meu beijo foi elogiado, o meu sexo, os cachos do meu cabelo… Mas nenhum desses, que me elogiavam, mantinha qualquer forma de contato ou tentava prolongar a relação. Era sempre algo casual. E isso doeu, sabe? Por muito tempo doeu ser preterido.
Mas quando reconheci a minha negritude, entendi a discussão que se faz há tempos sobre a solidão da pessoa negra. As mulheres negras são objetificadas em papéis sexuais ou servis, como apontou Lélia Gonzalez, e os homens negros são aproximados de um ideal de virilidade, de sexualidade… No fim, à pessoa negra não é direcionado o afeto. Acho que foi isso que busquei traduzir nessas poucas linhas.
LUIZ: Agora, aquela pergunta clichê pra quem está lendo poder saber mais sobre o livro: o que é o seu livro “Agora e na Hora de Nossa Morte”?
JOÃO: Eu tenho apresentado o meu novo livro, “Agora e na hora de nossa morte”, como um manifesto poético sobre a ressignificação das dores vividas e sua transformação em resistência política e pulsão de vida. O livro fala sobre mim e também sobre muitas outras pessoas com as quais eu compartilho cruzamentos, como a vivência no candomblé, a negritude, o hiv, o medo da violência lgbtifóbica, do racismo, etc.
Comecei a escrever o livro em 2019 e ele reúne poemas escritos desde 2013 e principalmente alguns que escrevi durante a pandemia da Covid-19. Ele é uma espécie de “xirê” em palavras. Para quem não sabe, o xirê é um dos ritos centrais da liturgia do candomblé, é o momento de abertura das cerimônias nos quais todos os Orixás são saudados com suas cantigas e danças. E digo isso porque o livro abre com uma saudação a Exú, o primeiro Orixá, senhor da comunicação; traz uma cantiga à Oxum, meu Orixá de cabeça, e finaliza com uma saudação a Oxalá, o pai de todos os Orixás, o mais velho de todos e meu pai. Dessa forma, apresento meu corpo como texto e protesto, e faço, como dito no texto da orelha escrito pelo Ramon Nunes Mello, “a dor como combustível para atear fogo no preconceito e nas violências cotidianas”.
Embora o livro fale muito sobre a morte, desde o título, quero que ele seja recebido como uma ode à existência e à permanência – porque mais que resistir diariamente, busco permanecer e ser, existindo, consciente das possibilidades do fim.
LUIZ: Nos últimos anos, tenho acompanhado você e visto seu engajamento após a descoberta da vida com hiv. Inclusive, em um dos poemas você diz “que quem vive com hiv antes de tudo vive”, né? Existe alguma relação entre ter se descoberto vivendo com hiv e o título do livro “Agora e na Hora de Nossa Morte”? Me parece um jogo com o estigma à doença criado por movimentos conservadores/igreja, ou estou enganado?
JOÃO: Sim, a questão do hiv/aids aparece como tema no livro porque é algo que existe em minha vida, uma realidade presente há quase dois anos. Como digo em um dos poemas, descobri o meu status sorológico positivo no dia 01 de fevereiro de 2021. Desde então tornei a minha sorologia pública e venho buscando compartilhar e disseminar informações sobre o vírus e a vida com ele. Atualmente, pessoas em adesão ao tratamento se encontram em situação indetectável (ou seja, há tão pouca quantidade do vírus no sangue, em decorrência do uso diário dos antirretrovirais, que ele não pode mais ser detectado) e intransmissível (com cópias tão baixas do vírus, não é mais possível transmiti-lo por via sexual) e vivem normalmente. O hiv, hoje, é uma doença crônica como a hipertensão ou o diabetes. Mas os estigmas persistem e, por isso, existe toda uma seção no livro na qual apresento poemas escritos após a descoberta da minha sorologia, e falando sobre o vírus, falando sobre quem “vive com hiv antes de tudo vive”, por exemplo.
Esse poema se tornou viral durante a pré-venda do meu livro, o que foi bacana, e de fato muita gente relacionou o título do livro com a minha vivência com o vírus. Embora possam ser feitas aproximações, uma coisa não está diretamente ligada à outra. Como disse anteriormente, comecei a escrever o livro em 2019 e na época eu já havia me decidido por esse nome.
Geralmente os títulos dos meus livros surgem para mim antes mesmo dos livros, como uma ideia-conceito, então eu só organizo os poemas que estiverem alinhados com a proposta pensada. Foi assim com esse… Sabe, eu cresci na igreja católica, mas nunca me identifiquei com a religião. Ainda assim, sempre tive profunda ligação com Santa Maria – não à toa, sou filho de Oxum, Orixá sincretizada com Nossa Senhora de Aparecida e Nossa Senhora da Conceição, aspectos de Santa Maria. A oração de Nossa Senhora tem uma simbologia muito bonita e basicamente aponta o zelo que ela tem por todas as pessoas como se fossem suas filhas.
Quando decidi nomear o livro com os versos finais dessa oração, fiz também uma aproximação com a visão iorubá da morte. Para o povo nagô (sou da nação Ketu no candomblé), a morte não é o fim, mas o retorno ao Orum – uma nova forma de existência, no seio da divindade, em contato direto com nossos ancestrais e com nosso Orixá. Ao dizer “agora e na hora de nossa morte”, quero dizer que permaneço vivo agora, protegido por todos e todas que vieram antes de mim, seres materiais ou não, e que permanecerei existindo mesmo “na hora da minha morte” e depois dela. É um sentido bem mais filosófico, mas sua interpretação sobre o título ser um jogo com o estigma criado sobre o hiv pela igreja e movimentos conservadores é uma ótima leitura também! Gostei dela.
De fato o título pode ser referenciado à vida que temos agora, nós pessoas que vivemos com hiv e/ou aids, e que não se esgota mesmo na hora de nossa morte, ou mesmo como um deboche ao cristianismo, que tanto culpou pessoas LGBTQIA+ pela pandemia do hiv/aids e alegou que as mesmas mereciam o fim causado pela doença…
LUIZ: Negritude, questões da comunidade LGBTQIA+, tudo isso margeado por uma vida periférica, ao lado de seus poemas marginais. Como você vai misturando essas referências e como elas resultam na sua poesia?
JOÃO: Gosto de olhar a minha poesia como uma espécie de colcha de retalhos que vou “costurando” a partir de diversas referências. Todo texto, todo poema que escrevo, é resultado de algo que me atravessa. Seja uma experiência real, uma vivência, uma história vivida ou ouvida, um filme, uma música, ou um fator social, como a negritude e a minha sexualidade. Eu nasci em Queimados, na Baixada Fluminense, na periferia da Região Metropolitana do RJ.
Sou um homem negro de pele clara, pansexual, vivendo com hiv. Tenho grande preocupação em registrar esses aspectos da minha vida, torna-los temas dos meus poemas e textos, porque por muito tempo não se falou sobre essas questões. A literatura, durante muito tempo, esteve restrita a um nicho específico da sociedade, sendo escrita e consumida por homens brancos, cisgênero, heterossexuais, oriundos dos grandes centros urbanos. Mas mulheres, pessoas negras, nordestinas, etc., sempre escreveram – só não tinham a mesma entrada no mercado. Atualmente, acredito, as coisas estão diferentes, embora muito ainda precise ser feito.
Mas vou misturando essas referências como meio de visibilizar o que por muito não foi visto. E não tenho aquela ilusão de que a poesia é o belo, ou o que se mostra como belo a partir do que nos atravessa. Para mim, a poesia é o que me suspende a respiração, o que me atinge e me surpreende. Por isso escrevo sobre temas que podem ser considerados tão “crus”: porque a poesia é uma forma de desvelar o que existe e nem sempre é enxergado. Allen Ginsberg fez isso, Adão Ventura, Maya Angelou, Piva, Gullar… Eu, modestamente, venho arriscando fazer o mesmo.
LUIZ: Quem era o João de 10 anos atrás, quando a gente se conheceu, e como ele foi construindo o poeta que é hoje? Apresente um pouco seus livros e poemas pro público do Notaterapia!
JOÃO: O João de 10 anos atrás sem dúvida esperava ser hoje quem eu sou. Sei que ainda não estou no local que almejo, de fato, mas estou bem próximo do que desejo. Acho que, quando nos conhecemos, eu ainda era bastante imaturo, em vários aspectos, e inexperiente e esses 10 anos fizeram grande diferença na constituição de mim enquanto acadêmico, indivíduo político e escritor. Aquele garoto de 18, quase 19 anos, ainda não sabia o tanto de si que pude descobrir no tempo que veio depois.
O poeta de hoje já existia naquele João, mas ainda precisava olhar mais para dentro de si para ver melhor tudo o que há fora, para ver com outros olhos.
Fui me formando em muitos sentidos, tive perdas e muitos ganhos. Atualmente sou Mestre em História Social pela UFF, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo IFRJ-Nilópolis, mestrando em Sociologia pela UFRJ e doutorando em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Publiquei poemas em diversas revistas impressas e eletrônicas, sites e blogs no Brasil, na Grécia e em Portugal. Integrei antologias, publiquei uma plaquete em 2016 e dois livros, em 2020. Meus poemas estão espalhados pela internet, uma rápida pesquisa pelo meu nome mostra bastante coisa. Mas faço questão de apresentar abaixo dois poemas, um de cada um dos meus livros anteriores.
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Do livro “O que ri por último”, publicado pela Editora Patuá, o poema “balada”:
“é certo o enterro
de cada palavra
antes que o mês acabe
como um soluço
não sou nada
o mundo é imenso
e a porta da cozinha está
aberta pro frio entrar
falta pouco pros dedos
se acostumarem aos furos
mas prefiro o toque
e o que me toca
não é o medo
é o espanto
o instante exato do instinto
não é a vida
mas a morte
a certeza de estar
entre parênteses
não são suficientes
beijos sob a chuva
poesia não é estrada
de amor eterno –
nascer
é um exercício diário”
E do livro “O tédio dos dias variados”, publicado pela Editora Urutau, o poema “um homem bom”:
“afinal um bom homem é um homem normal, e se ele é normal é um homem respeitável. há milhões de anos deus o fez sua imagem e semelhança, biba que nunca racha, então usa terno, tem a barba feita, não gosta da claudia raia nem fala palavrões. afinal é um homem bom. respeita padres e crucifixos, tem grana e moral e odeia dzi croquettes. há milhões de anos aprendeu a se barbear, agora usa sapatos, pisa o ventre reto no caminho, não lê caio f. muito menos pagu e é um homem normal, um cidadão respeitável.”
Esses dois livros, “O que ri por último” e “O tédio dos dias variados”, foram publicados em 2020. O primeiro saiu pela Patuá, pode ser adquirido pelo site da editora e também pela Amazon. O segundo, publicado pela Urutau, pode ser comprado pelo site da editora e pelo site da livraria da Travessa. Ambos já estavam prontos desde o começo de 2018, pelo menos, e eu os vinha tentando editar. O primeiro a ser publicado, na verdade, ficou pronto em 2017 e reúne poemas que escrevi antes, durante e após um longo namoro, iniciado em 2012 e finalizado em 2016. É um livro sobre dor-de-cotovelo rsrs
O segundo, pronto desde 2015, é a manifestação dos meus primeiros exercícios poéticos e faz um acerto de contas com aspectos da feminilidade e do feminino que durante muito tempo fui constrangido a evitar em mim.
Os dois são trabalhos dos quais me orgulho demais, sempre fico feliz quando vejo alguém lendo algum deles. Mas este mais recente, “Agora e na hora de nossa morte”, sem dúvidas é o meu novo xodó, meu livro mais maduro, e espero que ele circule o máximo que for possível!