Uma pergunta que a gente sempre deve fazer quando for começar um livro da Jane Austen é: O que a gente lê quando lê um livro dela? Essa pergunta pode ajudar não só para desfazer estereótipos que são atribuídos aos livros da autora, como para colocar a gente naquilo que a gente deseja quando encara suas obras.
Um dos motivos de se fazer essa pergunta, em especial no caso de Jane Austen, é que existe um nicho de mercado bastante explorado por edições e editoras, séries e adaptações cinematográficas, que buscam trazer aos leitores a sensação de que ler Jane Austen é ler, basicamente, uma história de amor. Por um lado, isto é uma tentativa de explorar o nicho de uma “literatura feminina”, como se ser mulher e escrever fosse escrever sempre do mesmo lugar, por outro, é aproveitar a referência do amor romântico no mundo pop para aumentar as possibilidades mercadológicas financeiras de seus livros. Uma engenharia simples, mas que de tanto ser repetida colou na figura da autora e precisamos desfazer.
Bom, do que são os livros da Jane Austen?
Se eu fosse resumir do que tratam os romances da Jane Austen, diria que ela forma uma tríade, como se fosse uma pirâmide, entre nomes, sentimentos e lugares. No caso, ela deixa isso bastante claro, mas como não prestamos atenção, isto passa com um segredo, como se estivesse oculto, apesar de estar evidente já nos títulos, né? Basta olhar os nomes de suas obras que essa divisão aparece:
NOMES: Emma, Lady Susan, Susan (primeiro nome de Northanger Abby)
SENTIMENTOS: Orgulho e Preconceito, Razão e Sensibilidade, Persuasão, Amor e Amizade
LUGARES: Mansfield Park, Northanger Abby
Essa separação não significa dizer que as obras não tratem de outras coisas, nem sequer apontar que elas se debruçam apenas sobre esses elementos em cada uma delas. Pelo contrário, é mais para perceber que, em cada romance, estes três pontos são essenciais para abordagem e aproximação das obras. Veja também:
Os “sentimentos”
Para mostrar estes pontos da perspectiva de um exemplo, vamos trazer o romance Razão e Sensibilidade, a partir da edição para o Círculo do Livro, de Ivo Barroso, que deu ao romance o título Razão e Sentimento. Um primeiro ponto muito importante de ser ressaltado é essa diferença na tradução do título. Logo a princípio, a diferença entre Razão e Sensibilidade (como na tradução da Penguin de Alexandre Barbosa de Souza) e Razão e Sentimento(de Ivo Barroso), deixa ver duas faces desses sentimentos abordados pela Jane Austen.
Ivo Barroso, em texto sobre a tradução do livro, disse que optou pela palavra “sentimento”, pois a ideia de uma “sensibilidade” é incomum na língua inglesa na tradução da palavra “sensibility”. No entanto, é possível ver uma diferença evidente na ideia de sentimento, ou seja, o próprio ato de sentir, estar sentindo, um processo de intimidade com o sentir, e a ideia de uma “sensibilidade”, que nada mais é do que a capacidade de sentir, o fato de estar apto a tal ou a possibilidade inerente de cada ser de sentir.
No caso, eu poderia ter usado a palavra “substantivo”, na medida que razão, sentimento, orgulho e preconceito são substâncias de suas personagens. Porém, a proposta do texto é justamente tentar desfazer a lógica geralmente atribuída a textos escritos por mulheres, do “sentimento” como algo menor. Pelo contrário, os sentimentos ou melhor, a ambivalência entre eles, é uma potência de análise da sociedade da época e um ponto de inflexão que dá o traço de genialidade de Jane Austen diante de outras escritas.
Os nomes
Emma é um romance protagonizado por Emma. Mr Darcy e Elisabeth Bennet são personagens que a gente não consegue esquecer. Razão e Sensibilidade gira em torno da figura de duas irmãs: Elinor e Marianne. Quando Jane Austen traça essas duas pontas da pirâmide – a razão e o sentimento – e dá a elas nomes, o que faz é aproximar o leitor de duas duplas ambivalentes.
Elinor é a racional, aquela que se adequa às normas da sociedade não só porque se sente obrigada, mas porque vê nesta lógica uma forma de adquirir benefícios próprios. Não se deixa dominar pelos sentimentos, mas opera-os a todo tempo a partir de uma racionalidade, pelo menos aquela que ela considera ser uma racionalidade, de um ponto de vista marcado pela tentativa de adequação de si própria ao mundo.
Do outro lado, está Marianne que, logo de cara, se mostra o avesso de Elinor. Marianne vê nas convenções sociais entraves para seus sentimentos e seus planos. Percebe que toda performance social é, na verdade, a tentativa de mascarar aquilo que se sente e a todo instante deve ser calado. Não se sente obrigada a frequentar eventos sociais se assim não quiser, se permitir a ignorar etiquetas sociais e, sempre que pode, deixa clara sua marca como diferença de um bojo social.
Essa diferenciação para Jane Austen, no entanto, tem um intuito: montar o seu mapa, não descrevê-lo. Arrumar o romance, não encerrá-lo, descrever uma geografia daquela sociedade, não defini-la. E aí vem a genialidade da autora: é com este mapa montado que ela vai montar e desmontar, fazer e desfazer, modelar e desmodelar esses sentimentos diante dos nomes: Elinor, assim, pode ser Marianne e vice versa. A razão pode ser baseada nos sentimentos e os sentimentos pode partir de lógicas racionais. Assim como Orgulho e Preconceito são faces da mesma questão entre Mr. Darcy e a Srta Bennet.
Os lugares
O último ponto que fecha a nossa pirâmide que monta as obras de Jane Austen são os lugares. E é importante ressaltar que não só nas obras com nomes de lugares que isso é relevante. Os lugares são personagens e agentes das histórias das autoras e, em cada romance, a ideia de região atravessa o tempo inteiro nas narrativas. E lugares aqui não significa apenas região, mas também lugares sociais, um bairro nobre x uma vila, a cidade grande x o campo, um chalé x uma mansão.
Todos esses pontos são essenciais para estruturar as obras da autora. Inclusive, no artigo sobre Jane escrito por Virgínia Woolf, ela conta como as personagens de Austen se localizam muito pelo espaço da casa, encerradas nelas, de modo que a casa em si ganha um aspecto particularmente importante. Uma espécie de região que se dá por dentro.
No caso de Razão e Sentimento, por exemplo, o romance começa justamente quando a família de Elinor e Marianne precisa mudar para uma região afastada de onde estavam e para uma casa mais simples. Com a morte do pai, sua mansão vai para um filho mais velho de outro relacionamento e elas se deslocam no território e nas classes sociais. É isto que permite que Elinor se afaste de seu pretendente, o primo Edward, mas também permite que Marianne se aproxime do seu Willhouby.
É também quando as duas vão passar um tempo na casa da Sra. Jennings, em Londres, ou seja, saem de seu chalé para morar numa casa de posses na capital do país, fazendo viagem de três dias, que grande parte dos desdobramentos das histórias se dão.
O deslocamento triplo: a mansão em uma região abastada, deslocamento para uma vila, um chalé, a ida para a cidade grande montam uma espécie de triângulo espacial no interior da própria obra que fazem a gente ver as diferenças de classe, diferenças de títulos de nobreza, profissão e até de um espaço urbano para outros mais bucólicos.
Veja também:
A partir desses três pontos, creio que você já está apto(a) para mergulhar nas obras de Jane Austen de outras perspectivas. É evidente que as obras da autora não falam apenas desses pontos. Eles são apenas um suporte para você poder adentrar seus romances para além das histórias de amor e as intrigas conjugais.
Jane Austen é até hoje uma das maiores pensadores do seu tempo. Escreveu na arte coisa que a gente deveria aprender hoje. Se a gente lê só amor em seus livros, a gente é mais conservador que ela que pensava o amor por outros lugares, adiava, manipulava, refletia, enquanto a gente só se deixa levar. Jane Austen, sempre genial.