Eu julho de 1942, a família Frank se muda para um esconderijo em Amsterdam, lugar onde Otto, pai de Anne Frank, trabalhava. Pouco tempo antes, a menina de treze anos havia ganhado um caderno no qual começaria a escrever seu diário, as notas de sua vida de adolescente. Em agosto de 1944, poucos meses antes do fim da segunda guerra, o esconderijo onde a família estava foi encontrado e eles foram enviados para um campo de concentração, onde Anne morreu. No interior de seu diário, Anne Frank projetou um romance que gostaria de publicar sobre tudo que narrou a respeito de A Casa dos Fundos, como ela chamava o esconderijo. Depois de muitos anos, esse projeto de romance epistolar, com cartas enviadas a uma amiga imaginária, Kitty, foi publicado separado do resto dos diários, para dar a ver a obra de Anne Frank naquilo que ela projetou de literário.
Esta é uma história que precisamos constantemente lembrar para jamais repetirmos os horrores a história do nazismo.
O NotaTerapia separou alguns pontos desse romance para poder esmiuçar um pouco o pensamento, a obra, a arte e a vida de Anne Frank:
1- Era literatura? Era demais!
Muito se discute, embora a discussão já esteja obsoleta, sobre se diários são ou não literatura. O assunto, antes pautado num ranço academicista sobre literatura, na verdade, ganhou novos tons em que passou a ser considerado literatura tudo aquilo que é escrito e projetado com intenções de manifestações subjetivas. No caso de Anne Frank, cabe investigar como no romance epistolar da menina isto se deu, ou seja, como a sua subjetividade se projetou como arte e literatura. Em uma carta de março 1944, ela expressa claramente o desejo de que seus diários fossem um projeto de romance:
Imagina como seria interessante se eu publicasse um romance sobre a Casa dos Fundos. Com esse título, as pessoas pensariam que se trata de um romance policial. Agora, falando sério, cerca de dez anos depois da guerra, deve ser engraçado ler como nós, judeus, vivemos, começos e conversamos aqui. Ainda que eu lhe conte muito sobre nós, você sabe muito pouco sobre nossa vida.
Outro indício de que Anne Frank projetou como literatura seus diários, está nas constantes correções e revisões que ela fazia no texto. Em geral, um diário é escrito e abandonado como tal, ou seja, é o registro de um momento, um extrato da vida. Ela, porém, voltava aos diários antigos e os recopiava e retranscrevia acrescentando e retirando partes. De certa forma, o que ela fazia já era editar seu próprio livro enquanto produzia os diários.
2- O duplo secreto
É interessante pensar na escrita do diário a partir de uma lógica do confinamento. O diário, em geral, serve para registrar as atividades do dia, as tarefas, o encontro com as pessoas, a tentativa de capturar da pluralidade do mundo aquilo que só a subjetividade poderia encontrar. Além disso, é uma forma íntima de registrar o mundo, uma forma de escrever um segredo, transmitir algo que, muitas vezes, nem nós conhecemos.
No caso de Querida Kitty, algumas coisas chamam atenção: primeiro pelo fato de que grande parte do diário foi escrito enquanto ela estava no confinamento, ou seja, enquanto está isolada com as duas famílias, incluindo a sua, que se escondiam nos fundos da empresa. Neste sentido, é basicamente um diário que relata uma constante repetição de atividades cotidianas mais básicas, o jantar, ouvir rádio, ler, dormir, ir ao banheiro. Pouco há do mundo exterior, a não ser poucas notícias que chegam rádio (que não podia ser ouvido muitas horas por dia) e uma janela que ela pode observar em poucos momentos da semana.
Isso faz com que Leda Cartum, pesquisadora, no prefácio da obra, trate Querida Kitty como um escrito de “duplo secreto”: um diário secreto escrito dentro de um esconderijo secreto. Um segredo no interior de um segredo como numa boneca russa.
3- A importância dos livros
Anne Frank relata a Kitty sobre a importante dos livros, principalmente diante da situação em que ela vivia com a família. A literatura, no caso, era uma das poucas formas de se educar sobre e para o mundo, a única possibilidade de uma experiência de um mundo exterior. Diz Anne Frank:
“Sábado é o dia pelo qual esperamos sempre ansiosamente, porque é dia de livros, até parecermos crianças quando recebem um pequeno presente. As pessoas comuns não sabem o quanto os livros significam para quem está isolado. Ler, estudar e ouvir rádio são as nossas únicas distrações.”
4- Escrever para alguém – mesmo que inventado
Uma coisa a se destacar no projeto literário de Anne Frank é uma literatura que busca um leitor. Como ela vivia em um esconderijo, trancada em casa 24 horas por dia, a escrita dela era pautada muito pelo isolamento do resto do mundo. Escrever, então, se tornava uma forma de se conectar com um exterior imaginado. E como ela resolveu isso?
Imaginando Kitty, uma amiga que escutava, de fora, as experiências ali de dentro. Assim, as cartas, o procedimento de escrita em direção a um outro, projetavam para Anne Frank um leitor imaginário, de fora, que gostaria e daria valor as experiências que ela vivia ali dentro. Tanto é que muitas vezes ela se dirige a Kitty com detalhes da rotina dentro da Casa dos Fundos, dizendo, por exemplo, o lugar em que cada um se sentava a mesa, descrição minuciosa das personalidades de cada uma das pessoas e, até, uma descrição física do espaço.
O que dava o toque final realista/literário era o fato de que Anne Frank começa as cartas com “Querida Kitty” e terminava assinando “Da sua Anne”.
5- Depois da Guerra
Muito do que se vivia na experiência da Casa dos Fundos era projetado para um “depois da guerra”. Anne Frank passa os dias estudando, lendo e se preparando para uma vida nesse “depois”, um futuro imaginado que infelizmente, foi retirado dela. Em alguns casos, era esse depois que fazia com que ela tivesse força para suportar todas as dificuldades vividas, seja pela comida escassa, seja pela necessidade de convivência confinada. Ao mesmo tempo, se pode ver a própria consciência social que atravessa ela projetando seu privilégio e a necessidade de ajudar os outros, mais necessitados. Em dois trechos, ela traduz esses sentimentos, muitas vezes ambivalentes:
Tenho medo de que o meu juízo, que não é assim tão grande, se esgote muito depressa e que não sobre nada para depois da guerra.
E quanto a nós? Estamos bem, sim, estamos melhores do que milhões de outros, ainda estamos sãos e salvos, comendo nosso dinheiro, por assim dizer. Somos tão egoístas que falamos de “depois da guerra”, alegramo-nos com a ideia de ter roupas e sapatos novos, enquanto, na realidade, devemos poupar cada centavo para depois da guerra poder ajudar essas outras pessoas, para salvar o que ainda pode ser salvo.
6- Morte
Apesar de Kitty não ouvir Anne Frank falar muito da morte, em alguns momentos é inevitável que isso vez ou outra esbarre na menina. As notícias chegam até eles dos trens, dos campos de concentração, das pessoas próximas sendo levadas. A morte, então, passa a rondar aquele ambiente ainda que não se fale dela. Anne Frank, no entanto, parece mostrar bastante maturidade e até resiliência em relação a morte, entendendo que a sobrevivência dela e de seus era resultado do acaso, da possibilidade que eles tinham de ganhar tempo contra o avanço nazista. Em carta de 3 de fevereiro de 1944, ela anota:
Estou muito calma e não me importo mais com toda essa agitação. Cheguei a um ponto em que já não me interessa muito se morro ou continuo vivendo. O mundo vai continuar girando sem mim e, de qualquer forma, eu não tenho como influenciar os acontecimentos.
Vou pagar pra ver e, enquanto isso não faço nada além de estudar e esperar por um final feliz.
Um final feliz que ninguém pode ver, né?
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Editora: Zahar, 2021
Autora: Anne Frank
Páginas: 312