Toda esta literatura dissolvente será por acaso um sintoma de que o homem brasileiro está às portas de desistir de si mesmo?”
Eu sempre digo que Angústia é meu livro preferido do Graciliano Ramos, mas só tinha memória de ter lido ele na adolescência. Acabei de reler o livro e confirmo: é, pra mim, a obra prima dele, mais que Vidas Secas.
O que me encanta no livro é que ele é uma história de fracasso. Uma história interna do fracasso. Talvez, a alma do homem fracassado. O Luís da Silva que se apaixona (se apaixona mesmo?) por Marina é um típico fracassado da literatura: um homem que sequer tenta a vida, acostumado ao pouco, que tem rancor de quem tem alguma coisa. Ressentido pelos inteligentes, pelos ricos, pelos artistas, pelas mulheres. De Marina, diz:
Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.
Graciliano escreve no seu fluxo de consciência a febre, a raiva, o rancor, a neblina do mundo. Tudo isso a partir de um verniz literário ríspido, mas que sabe navegar pelas veias da rispidez. O interessante de pensar o livro pelo seu fracasso é que o próprio Graciliano considera essa sua obra com mais defeitos, sem aprumo, seu ponto de fracasso. Diz ele:
Acho em Angústia numerosos defeitos, repetições excessivas, minúcias talvez desnecessárias. E tudo mal escrito. Mas se, apesar disso, der ao leitor uma impressão razoável, devo concordar com v. É possível até que as falhas tenham concorrido para levar na história aparência de realidade. E alguns capítulos não me parecem ruins.
Mário de Andrade, o grande escritor do modernismo brasileiro, escreveu um texto chamado A Elegia de Abril reclamando disso: dos heróis fracassados da literatura da década de 30/40 que nem tentam a vida, incluindo Banguê, de José Lins do Rego e Angústia, do Graciliano. Ele critica o “sofrimento humano criado, ou pelo menos, largamente desenvolvido na ficção contemporânea do Brasil” que, segundo ele, seria esse “herói novo, esse protagonista sintomático de muitos de nossos melhores novelistas atuais: o fracassado.” Um fracassado que reclama “um amor, uma terra, uma luta social, um ser que faliu.” O problema é que esses fracassados não são como os grandes da história que perdiam, mas perdiam por um ideal. Não eram um Dom Quixote que enfrentava moinhos de vento, nem um Hamlet que morreu tentando recuperar a verdade de seu passado.
E é possível ver a raiva desse mundo na figura do Luís se revelando em muitos momentos numa angústia que, inclusive, crítica o próprio mundo dos livros, a própria atividade de escrever, de comprar e consumir livros. Será que Graciliano estaria concordando com Mário? Veja só:
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas, exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição.
Ler Graciliano Ramos é mergulhar num mundo sem muitas chaves. Sempre duro, sempre penoso, uma angústia da palavra, que escapa da palavra. Angústia é só o livro da perda. O que sobrou da perda. Por isso tanta Angústia. A perda pega pelo rabo. A perda pelo fim.
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