Autor: Will Eisner
Editora: Brasiliense
Ano: 1988
Páginas: 191
Uma das principais características da arte contemporânea é a tentativa de investigação sobre uma pequena partícula de nossa sociedade fragmentada e acelerada. A intenção é que, ao analisar um pequeno microcosmo e suas dinâmicas, seria possível extrair alguma verdade, ainda que parcial, sobre a sociedade como um todo, como se aquele pequeno pedaço fosse quase uma sinédoque, uma metonímia, ou quiçá, uma parábola de algo para além de si próprio. Esta é a investigação que faz Will Eisner, em Um Contrato com Deus & Outras Histórias de Cortiço: a tentativa de perceber, em um prédio decadente de um Estados Unidos que tenta se reconstruir após a grande Depressão pós-queda de 29, como as vidas, as dinâmicas dos corpos e as organizações sociais se dão. Mais que isso, a obra busca entender como as pessoas, anônimas, sofridas, gastas, têm sua subjetividade alterada pelas ações dos outros e pelos seus espaços de moradia, no micro, e pelas consequências de ações políticas e econômicas, no macro.
Um Contrato com Deus & Outras Histórias de Cortiço, de Will Eisner, é o primeiro quadrinho do autor após o sucesso de Spirit, com um intervalo de vinte anos entre uma produção e outra. Este tempo sem fazer HQs, de alguma maneira, como se algo ficasse encubado para pular para fora, serviu para que Eisner desenvolvesse sua técnica e atingisse uma maturidade em termos de percepção do mundo, resultando numa obra que é um verdadeiro marco nos quadrinhos americanos. O Livro gira em torno de um cortiço americano localizado na Avenida Dropsie, 55, no Bronx, e possui quatro histórias: Um Contrato com Deus, em que um sujeito, quando jovem, resolve assinar um contrato com Deus e segui-lo a risca até que sua filha morre e ele se sente traído pela figura divina; O Cantor de Rua sobre um homem que, como muitos, vai para os becos dos cortiços cantar por alguns trocados, após perder seus empregos nas principais casas da cidade, e conhece uma mulher que se diz diva da música e promete transformá-lo em um super cantor; O Zelador, que conta a história de um taciturno zelador de cortiço que, em sua solidão e taras, vê sua derrocada; e, por fim, Cookalein, sobre o período de férias das pessoas do cortiço em que renovam esperanças de uma vida melhor, casamentos, etc.
É muito comum em diversas análises sobre as obras de Eisner, se dizer que ele de alguma maneira “capta a alma das figuras” que representa, entretanto, o que vemos é justamente o oposto: o que parece claro em suas histórias é justamente aquilo que se debruça de subjetividade em seus corpos. Quase todos são entregues a seus principais vícios, como o Cantor de Rua que vê sua vida espelhada naquilo que a própria diva acusa de seu ex-marido, ou o Zelador que é facilmente deixado enganar por uma criança em troca de um níquel; São, ainda, figuras que se se veem a todo instante projetados em suas deformações, como Frimme Hersch, em Um Contrato com Deus, que não consegue projetar seu futuro para além de seu contrato e, sem ele, repete a história americana de sucesso e opressão aos mais pobres.
É como se, de alguma forma, nenhuma das figuras – como nós – possuíssem mais do que superfícies densas e intransponíveis, como se fosse impossível descobrir subjetividades para além de uma reação direta do corpo às ações fragmentadas e sem sentido da vida, como se houvesse a intuição de um destino que estivesse sempre um minuto atrasado e, antes de entendê-lo, fosse preciso correr atrás dele. Por isso, as figuras tanto se repetem…por isso que elas são incapazes de mudar e de escapar de si próprias.
Além do mais, vendo a obra a partir de uma noção mais política, tratam-se de figuras marginalizadas, ao mesmo tempo, criadas e excluídas do sonho americano, incluindo muitos imigrantes. Assim, elas são quase que amaldiçoadas, como se tivessem cometido uma espécie de pecado original que um acaso qualquer ou um gesto que elas não sabem qual é pudesse vir a salvá-las.
Will Eisner é um grande investigador das imagens. Ele traz à superfície dos corpos camadas, não da alma, mas de corpos profundos, que são margens de si próprios e de uma sociedade que vê tudo com uma lente deformada, esticada. O autor projeta em seu universo esta deformação, talvez como denúncia, talvez simplesmente porque precisamos ver, na arte, aquilo que a realidade não permite.