A vida invisível, pelo formato de um folhetim dramático, apresenta com um corte profundo as dores silenciadas no matrimônio e as histórias invisibilizadas das mulheres brasileiras. O novo filme de Karim Aïnouz, diretor de O Céu de Suely e Madame Satã, foi vencedor do prêmio Um Certo Olhar do Festival de Cannes e é candidato a uma das vagas ao Oscar 2020 na categoria Melhor Filme Estrangeiro, com estreia nesta quinta-feira (21).
A obra expõe os desencontros de duas irmãs e a solidão feminina no matrimônio, bem como a violência legitimada pelas estruturas sociais. A sensação provocada pelo filme é a permanente agonia em face dessas marcas de uma época ainda na vida da mulher brasileira. A história se passa nos anos 50 e trata da relação entre as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler). As duas parecem, à primeira vista, personagens de comportamentos opostos. No decorrer do filme, porém, o sofrimento enquanto mulher as entrelaça mesmo que à distância, compondo, assim, um grande folhetim dramático sobre corpos e liberdade.
Eurídice é uma jovem talentosa pianista que enche a casa dos pais de música, na Tijuca. O instrumento é sua única forma de expansão e liberdade. Já Guida encontra esse sentido indo para festas e se apaixonando por um jovem grego, sonhando com continentes distantes. O destino das suas se desencontra quando Guida resolve fugir e Eurídice fica, para as pressões do casamento e ver seu sonho de formação se tornar secundário.
Apesar de o filme ter Fernanda Montenegro como destaque no elenco, grande parte do filme é construído pela atuação de Carol Duarte e Julia Stockler. Ambas dão a nota perfeita para as personagens, em uma atuação que se complementa com extremo cuidado. Carol faz de Eurídice uma força silenciosa, a qual o espectador consegue sentir pulsar, e Julia fornece à Guida o sentir revolucionário da mulher nas ruas. Juntas, elas promovem um avançar e um recuar entre cenas, quase marítimo, de esforços muito arquetípicos da mulher buscando respirar e viver. Fernanda Montenegro aparece logo ao fim do filme, como a fase final de Eurídice, e o tempo em tela é o suficiente para abraçar e costurar as emoções vividas anteriormente pela sua personagem, interpretada por Carol Duarte. É uma atriz que não cansa de surpreender pela seu talento de contar tanta coisa pelos olhos e pelo silêncio.
‘A vida invisível’ é, sobretudo, uma soma de imagens que comprova a invisibilidade da mulher como sujeito livre. Vemos essas inúmeras violências cotidianas perpassarem toda a fase de vida das duas personagens, vidas que se tornam silêncios dolorosos. As cenas de sexo presentes no filme, entre situações de matrimônio e prostituição, não as separam em polos opostos, pois ambos os contextos acabam em estupros legitimados socialmente por uma condenação do corpo e da vontade femininos. Assistimos a força solitária de Guida em se reerguer com ajuda de outras mulheres, enquanto Eurídice se encontra isolada e à mercê do autoritarismo do marido e do pai. Coroado, ainda, pela tensão da maternidade.
Com efeito, o simbolismo da Natureza usado constantemente para definir o feminino pela maternidade participa do filme com uma perspectiva muito bem estruturada: em vez dessas duas mulheres serem encerradas na idealização da maternidade como único fim da mulher, a Natureza aparece como o espaço de liberdade de Eurídice e Guida. Na verdade, é um espaço ambíguo, onde se perdem, onde se isolam, onde se libertam. O uso das plantas para contar a história é muito sábio, porque se começamos com as personagens perdidas numa mata tropical, gigantesca, viva e assustadora, verificamos essa natureza da juventude e do sujeito feminino em formação ir se esvaindo nos espaços domésticos. Onde exatamente as violências acontecem, quando mulheres não se encontram seguras nem nos próprios lares. São as plantas da casa dos pais que denotam o perigo desse controle, entrelaçando de forma sedutora os sonhos das jovens, e são as pequenas mudas regadas pela Eurídice mais velha demonstrando uma perda irrecuperável da liberdade.
A paleta de cores, nesse processo, é ótima aliada porque apresenta o contraste da cidade brutal e do casamento sem romantismos, enquanto as personagens ganham enquadramentos mais oníricos, de sonhos que, em vez de se esvaírem, permanecem como situações não resolvidas. Pulsações cheias de dor por querer viver entre o verde da mata. Do selvagem que deseja muito mais do que o meio urbano oferece ou interdita.
A vida invisível ganha um tom muito mais pesado do que o do livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha. Mas talvez tenha sido uma abordagem necessária para abrir as paredes de tantos lares e matrimônios de um período. Enquanto o livro tem passagens e linguagem mais bem-humorados, o filme de Karim é daqueles que emite diversos choques para despertar. É por esse avançar brutal que o diretor é bem-sucedido. Assim, a obra coloca uma luz forte concentrada nos sentimentos daquelas mulheres silenciadas nas mesas de jantar, entre mulheres que sonhavam nas esquinas e nos cantos das cozinhas, vidas repetidamente tornadas invisíveis.
Coletiva de imprensa
Fomos pelo NotaTerapia à coletiva de imprensa do filme A vida invisível no dia 18 de outubro. Muitas pautas foram discutidas entre elenco e equipe do filme, estando presentes o diretor Karim Aïnouz, o produtor Rodrigo Teixeira, as atrizes Fernanda Montenegro, Julia Stockler, Carol Duarte, Maria Manoella, o ator Gregório Duvivier, e grande parte da produção, ovacionada ao fim da coletiva pelo trabalho artístico.
O encontro serviu para reafirmar o engajamento da equipe com as pautas políticas da obra. Fazer um filme de época, para Karim, precisou incluir o quanto as mulheres conquistaram dos anos 50 para cá, e o quão pouco os homens mudaram. Um período que exigiu esforço para manter essas marcas de época, como as transformações significativas da obtenção da pílula anticoncepcional, a Revolução sexual e a possibilidade do divórcio. Situações que, de fato, foram relevantes ao movimento feminista, mas que ainda assim a contemporaneidade carrega muitas questões a resolver que estão presentes no filme. Karim diz que desejava também fazer um “filme fabular”, que não fosse “poeirento”, um filme sobre uma época.
Carol Duarte, que interpretou Eurídice, comentou que precisou apresentar uma violência um pouco muda. O desafio foi construir uma personagem que, aos poucos, vai se silenciando e sendo silenciada. Para a personagem, ela aprendeu a tocar piano, a incluir a musicalidade, os desejos e a expressão ao tocar o instrumento. Julia Stockler, a qual foi Guida, irmã de Eurídice no filme, menciona o fato de que sua personagem é uma revolução, “foi emocionante assistir essa mulher sem medo” e a força desse corpo público de Guida que participa do mundo.
Na sequência, Maria Manoella, intérprete de Zelda, é aquela que molda de alguma forma Eurídice às expectativas do patriarcado, que se realiza indiretamente pela amiga. Já Gregório Duvivier dá forma ao marido abusivo Antenor. Ele comenta que usou como figurino as roupas do avô para incorporar um tijucano. E finalizou sua fala comentando sobre o horror em perceber essas relações abusivas ainda presentes atualmente no matrimônio.
Fernanda Montenegro também estava na coletiva e sua presença foi marcada por muito humor e excelente posicionamento sobre sua personagem. “Faço uma Eurídice sem futuro”. Sua versão mais velha de Eurídice vem bastante da colaboração com o trabalho de Carol Duarte, “foi através do olho dela que costurei o meu”. Fernanda fala que A vida invisível é “Um filme uterino, vaginal” pois vai até as origens, é intenso, feminino. Sobre a sensibilidade do filme, “não há didatização dos sentimentos” e Eurídice se encontra em um “não-lugar dela no mundo”.
Além disso, Fernanda argumenta que a condição da mulher é sempre crítica. Sempre abaixo de um comando. E, quando não se encontra nesse estado, lutam pelo comando. Gravar o filme foi como ver o melhor sacramentado pela câmera, e o cinema é uma viagem mais do que interplanetária. Ela afirma que o desafio do ator é que ele não é o personagem. O grande mistério reside aí, pois o ator se envolve no impensável e a profissão é o de fazer suar a alma.
Sobre o futuro do cinema, Karim diz que é ainda otimista quanto ao momento que estamos vivendo criativamente. “Somos acúmulo histórico” e, por isso, podemos contestar com brilhantismo no agora. A intenção foi recriar um pouco do folhetim das novelas, dessa marca brasileira de contar histórias e encontrar beleza no folhetim, e não insistir em contá-las apenas pelo ponto de vista épico. “É um folhetim de rasgar o coração”. Rodrigo Teixeira foi quem intermediou a relação entre o livro e o filme, pois ligou para Karim dizendo ter encontrado uma história para contar, e ambos se reconheceram na história: Karim havia acabado de perder a mãe e o filme todo é a força da mulher conduzindo uma família.
Quando questionada sobre as críticas feitas pelo presidente atual e ministros, que teriam chamado a atriz de “sórdida”, Fernanda apenas riu e disse que o que falam não é quem ela é, e que procurem tratamento para achar algum sentido de vida. Nesse sentido, o produtor Rodrigo Teixeira reafirmou que “A Vida Invisível” é candidato a uma das vagas ao Oscar em 2020 na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e sobre a importância de divulgar a obra diante da intolerância do atual governo com as artes, para que assim o cinema e a cultura se mantenham firmes no cenário brasileiro.
A coletiva foi permeada por colocações excelentes sobre o filme. A profundidade da obra ecoava na fala da equipe. Fernanda conduziu a coletiva, ao fim, dizendo que sua inspiração é o próprio fato de estar viva ao completar 90 anos. A sabedoria de Fernanda trouxe falas belíssimas para a coletiva e um encantamento. Sobre Eurídice e o amor pela arte, Fernanda ressalta que não tem como conter uma real vocação e esse impulso pela criação. Mas que a arte é, sobretudo, uma busca pela liberdade.