O século XX foi marcado por significativas mudanças sociais que permitiram que grupos sociais, há anos subjugados, pudessem conquistar direitos igualitários. Dentre eles, as mulheres, que consistem em mais da metade da população mundial, mas que ainda persistiam subalternizadas numa sociedade que não reconhecia sua capacidade intelectual e/ou seu caráter de sujeito. O primeiro símbolo das conquistas pelos direitos feministas foi o sufrágio universal, que permitiu o voto às mulheres já no século XIX na Nova Zelândia e que se concretizou mais contundentemente no século posterior.
É evidente que os movimentos propulsionados pela genuína concepção de que mulheres e homens mereciam ocupar os mesmos espaços não deixaria de influenciar a produção de conhecimento e, sobretudo, a literatura. Toda a revisão de ideologias e as transformações políticas propiciadas pelos acontecimentos do século XX culminaram no que Simone de Beauvoir atestou em O segundo sexo, de 1949, marco do pensamento feminista: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Apesar de essa concepção haver sido oficialmente institucionalizada pela obra de Beauvoir, a literatura já exprimia essa noção primordial de que, na nossa sociedade, o que concebemos como “feminino” e “masculino” são mais construções sociais do que padrões biológicos. Tal ideia é reconhecida, por exemplo, nos contos de Virginia Woolf e de Ernest Hemingway.
A escritora inglesa, nascida em 1882, escreveu não somente o proeminente ensaio Um teto todo seu, em que sua ideologia feminista é mais explicitada, mas também obras cujas personagens femininas sempre se mostraram centrais, às sendo conferida complexidade, mais comumente identificada em personagens masculinos. O feminino, quando representado por escritores homens, e sobretudo num contexto em que a superioridade do masculino era institucionalizada, constantemente recaía no maniqueísmo de caráter: ou a personagem possuía características angelicais e sagradas, ou maléficas e demonizadas. Contudo, com a inserção (e aceitação) das mulheres na produção literária, essa visão dualista para as personagens femininas começou a ser superada para dar espaço a caracterizações cada vez mais subjetivas e, por isso, transgressoras. Virginia Woolf, que é considerada uma das grandes escritoras da literatura mundial, desafiou a tradição dessa representação feminina com personagens que agiram na contramão da imposição social e, corajosamente, buscaram o que realmente queriam. Um exemplo disso é o conto “O legado”, publicado na coleção A casa assombrada e outros contos em 1944.
“O legado” conta a história de um homem da alta classe e membro do Parlamento, Gilbert Clandon, que decide abrir a escrivaninha da sua esposa, Angela, depois de morta. Lá, encontra quinze volumes de um diário de Angela endereçados à sua secretária, Sissy Miller. O diário era uma evidência dos pensamentos mais profundos de sua esposa, em detalhava acontecimentos de sua vida minuciosamente, esta nunca foi de muito interesse de seu egocêntrico marido. Gilbert descobre, portanto, a causa da morte de Angela: sua esposa havia se apaixonado pelo irmão de Sissy e ambos se suicidaram ao perceber a impossibilidade de ficarem juntos.
Apesar da atitude de Angela Glandon ter sido causada pelo impedimento de seu sonho, escolhendo o suicídio, trata-se de uma evidência pungente do encarceramento que pode ser promovido às mulheres com um casamento. Seu amante, B.M., não era um homem rico e presunçoso como Gilbert, e aparentemente não poderia sustentar as consequências de assumir o relacionamento entre os dois.
Cativa dessa condição, que a mantinha ligada a um homem desinteressado e que subestimava as mulheres, a personagem de Virginia Woolf toma a atitude mais “profana” para um sujeito do gênero feminino: suicida-se para “reencontrar” e o seu amante. Angela, antes de conhecer B.M, havia seguido os mandamentos da sociedade em que se inseria e se tornou um exemplar símbolo do feminino – a bela e angelical esposa de um homem rico. O peso do suicídio e do adultério macularia a visão que a sociedade tinha de si, o que a tornaria mais uma mulher desajustada e maléfica. No entanto, a história de Virginia Woolf confere complexidade às suas atitudes e permite uma perspectiva empática do leitor, fazendo com que a mulher não seja incompreendida e/ou rotulada de forma maniqueísta, como costumeiramente ocorria (e ainda ocorre) na literatura de autoria masculina. A potência do desfecho de Angela é a mesma da sua densa condição como mulher, mesmo que rica, numa sociedade patriarcal do século XX.
Em “Colinas como elefantes brancos”, Ernest Hemingway também exprime as relações de poder e jugo que implicam em qualquer relacionamento entre homens e mulheres, mesmo que amorosos. Como decorrência desse sistema de crenças que envolve a subalternização do gênero feminino, as relações sociais inevitavelmente envolvem essa ideologia que subentende a mulher como dependente do homem.
O conto de Hemingway, publicado pela primeira vez em 1927 na revista transition, é desenvolvido majoritariamente por meio de um diálogo entre um homem americano e uma mulher (a quem é dado somente o nome de “garota”) numa estação de trem em Madri. Ela compara os morros da paisagem a elefantes brancos e, a partir disso, o casal implicitamente discute uma operação que o homem quer que a moça realize.
Apesar da polissemia do conto, como há em todo texto literário, a cirurgia parece se tratar de um aborto. De forma sutil, o escritor critica o sexismo que resiste até em casais que vivem de forma não-convencional e que já desafiam os padrões sociais. O homem e a mulher do conto são viajantes, boêmios, e não estão restritos às regras sociais do casamento. Contudo, a gravidez indesejada da moça traz à tona o machismo estrutural de seu companheiro, que tenta persuadí-la a fazer um aborto.
A efabulação não deixa o desfecho quanto à decisão da garota claro, mas demonstra, por meio das sutilezas, quão intrínseco é o machismo nas relações humanas. Ao final, a jovem apenas pede para que seu companheiro “Pare de falar”, o que já significa um grande avanço na representação feminina na literatura, haja vista que o silêncio deveria partir sempre da mulher e não do homem.
As histórias demonstram níveis mais ou menos explícitos da emancipação feminina, mas ambos autores a colocaram de forma subversiva à tradição. Apesar de a denúncia do machismo ocorrer de forma diferente nos dois contos, a presença dessa questão é o que determina as ações das personagens e o que propulsiona a narrativa. Enquanto Virginia Woolf questiona o sexismo ao mostrar o narcisismo do homem que, alheio às vontades e ao caráter da esposa (que lhe era apenas um troféu), se choca com o seu adultério e seu suicídio, Hemingway desenvolve a questão por meio silêncio que impera no diálogo, por meio das palavras suprimidas e que subentendem a dominação do homem em relação a sua companheira.
No entanto, os dois escritores conseguiram, mesmo num gênero narrativo curto, exprimir as entranhas da subalternização feminina e demonstrar o peso dessa condição até para mulheres socialmente privilegiadas. A emancipação dessas personagens possui diferentes faces, uma vez que, enquanto uma a alcança com a atitude corajosa de silenciar o seu parceiro, outra o faz por meio da escrita dos seus sentimentos e do seu suicídio. Todavia, por fim, essas representações se fizeram relevantes não somente no seu contexto de publicação, da primeira metade do século XX, como também demonstram a importância da liberdade para as mulheres do século XXI – que ainda vivenciam os resquícios dessa dominação.
Arte da capa: Amy Dai