A guerra, a paz e o mal retratados em “Nobel” (Netflix)

É comum associar (ingenuamente?) aqueles que ganham o prêmio Nobel da paz a alguém com grandes feitos para a sociedade e o mundo, mas, quem são aqueles que realmente merecem ganhá-lo? Um ativista que entrou para o governo e possibilitou um projeto de plantação de maçãs no Afeganistão? Um lobista que consegue um acordo com os secretários do governo afegão para fazer com que haja exploração do Petróleo e que este se mantenha nas mãos do povo? Um Ministro disposto a negociar com a Al-Qaeda? Um soldado com sangue frio a ponto de atirar em uma criança?

“Não se enganem: o mal existe. Movimentos pacíficos não teriam detido o exército de Hitler. Negociações não podem convencer a Al-Qaeda a baixar as armas.”

Essa fala do discurso de Obama, da ocasião em que ganhara o Nobel da Paz em 2009, é dita antes da abertura de cada episódio de Nobel. A série norueguesa, lançada em 2016, sai da zona de conforto das tramas de guerra tantas vezes apresentadas nas telinhas.  Ao invés de buscar fazer uma crítica acerca dos traumas sofridos pelos soldados na guerra ou buscar sua exaltação, Nobel consegue provocar reflexões caríssimas aos dias de hoje: é possível negociar com terroristas? Como alguém que incentivou um trabalho para auxiliar em plantações num país dito subdesenvolvido pode fazer uso disso para ganhos pessoais? Um soldado que atira numa criança da idade do seu filho pode fazer isso em busca da paz?

E jogando o espectador nessas zonas de conflitos, a série nos provoca em reflexões acerca dos limites da moralidade. É claro que comparações com filmes e com o comportamento americanos são inevitáveis. A cena em que Erling, o protagonista, mira no garoto a espera de um sinal se ele vai ou não provocar uma explosão remete muito ao filme de Clint Eastwood, quando um menino segura um lança-míssil nas mãos. A diferença é que Erling atira e impede que um menino de uns dez anos faça um atentado terrorista em uma praça. Ao mesmo tempo, somos jogados na Noruega – cuja trama nos emerge em um conflito político que nos remete ao filme “O Atirador” – onde há (ou deveria haver) paz e calmaria, e vemos o filho desse mesmo soldado ameaçando um outro garoto com o famoso argumento do “meu pai vai atirar em você”.

A diferença é que Erling, ali, sabe o momento em que a violência deve ser usada. Como em um dos episódios em que o seu irmão, Jon Petter, diz em uma entrevista: é contra a natureza humana matar – tanto é que a maioria dos crimes de homicídio são passionais –, mas os soldados de elite são treinados para isso, e não é um motivo débil que os fará descarregar seus pentes em outrem.

Dessa forma, a série faz bom uso das relações familiares para mostrar não só a questão sentimental que envolvem as vidas dos soldados, como também a ausência de vínculo destes com suas vítimas (por que soldados sentem tanto por aqueles que perdem ou se ferem gravemente do seu lado, mas não sentem tanto por aqueles que matam?, o protagonista nos dá esse questionamento em um dos episódios), mas sempre lembramos do que dizia Chesterton: que o bom soldado luta por que ama o que defende, e não porque odeia os que ataca.

Grande parte do desenrolar dos conflitos – tanto na Noruega, como no Afeganistão – é embasado na atuação. Digo, a direção faz um jogo de câmeras (um pouco nervosas a meu ver) que não descansam, sempre acompanhando os movimentos dos atores e dando closes faciais bruscos para que possamos perceber o que as expressões têm as nos dizer em momentos importantes e elevando o drama, o que provoca, de certa forma, até nas cenas mais calmas um certo nível de inquietação. No entanto, a falta de estabilidade dos operadores (recurso proposital) em alguns momentos pode provocar mais desconfortos em nós do que nos ajuda a perceber desconfortos (ou expressões) dos personagens.

Porém isso não desmerece todo o trabalho de câmeras: as cenas no Afeganistão, bem como as cenas de ação são muito bem-feitas e quase todas são memoráveis, os diálogos são muito bem trabalhados e as atuações são satisfatórias – visto o grande peso que é dado a elas, nem sempre o ator consegue segurar a cena ou passar tudo que deveria apenas com o rosto e um close tremido no seu rosto. Há momentos que vão ser guardados sempre, como a cena do Buzkashi (em que dois times montados em cavalos tentam pegar uma cabra morta no chão e marcar um “gol” com ela), negociações com o líder do Talibã, além das cenas que envolvem explosões e, até, porque não?, a calmaria de um jogo de futebol entre soldados e crianças afegãs, ou um simples jogo de amarelinha?

Aliás, a série conta com vários momentos que te farão se remoer por dentro, devido ao alto nível do enredo, jogando a tensão para cima e conseguindo mantê-la por mais de um episódio, quase exigindo do espectador uma maratona para que não fique pensando horas e horas sobre o que se dará no próximo capítulo.  Nobel é uma série muito agradável de se ver, com ganchos que vão te amarrando e prendendo à trama de modo que, com apenas oito episódios de quarenta minutos, tenhamos vontade de terminar logo com ela (e também reconheceremos nosso arrependimento por isso).

Sim, o mal existe.

Os personagens de Johane e Erling fazem o paralelo que embasam a discussão proposta pela série: enquanto Johane é uma empregada do governo, que trabalha no Ministério das Relações Exteriores, Erling é o soldado: ela luta, junta do Ministro, para que as negociações com o Afeganistão culminem em parcerias que possam levar desenvolvimento a ambos os países e, mais, a acabar com os conflitos internos que existem no próprio país do Oriente Médio; já ele é o homem que tem de puxar o gatilho e fazer o trabalho sujo – enquanto homens como o próprio Ministro das relações exteriores se protegem e se beneficiam disso.

Homens que seriam potencialmente sujos, acabam sendo os que verdadeiramente lutam pela paz, enquanto os pacifistas acabariam por dar respaldo à violência, mesmo que de maneira indireta. Claro, truculências não são esquecidas: há comparações explícitas com o comportamento americano em guerras, como em uma das cenas que frisa como os americanos são conhecidos por matarem e não por morrerem – mesmo que a morte seja de um inocente – ou o fato uma reintegração feita apenas por necessidade política e que, em ocasiões ordinárias, jamais teria acontecido.

A série faz críticas contundentes, mas não se deixa levar por uma leitura ideologizada do fenômeno da guerra e suas consequências, para qualquer lado que poderia levar. É importante que sejamos bombardeados com esses questionamentos: seriam os soldados todos uns monstros, heróis por completo que seguram todo um país nas costas ou humanos tentando fazer o seu melhor, de modo que também erram, como qualquer outra pessoa, e têm de fazer coisas desagradáveis, como qualquer outra pessoa? Filantropos e pacifistas agem para um bem comum, por atos políticos ou para satisfazer o próprio ego? O prêmio Nobel da paz poderia ser dado a alguém que mandou assassinar um homem? Bem, ele já foi dado.

O título da série é bem claro, e remete ao prêmio Nobel, uma vez que uma das subtramas é exatamente a de quem o ganhará. É curioso notar como grande parte do prêmio é feito em meio a politicagens, sem que, no entanto, haja uma deturpação ou crítica profunda à família Nobel e seus comitês, no entanto, podemos perceber que as coisas não são tão brilhantes como imaginamos e que, no fundo, no fundo, sempre sabemos que não há nada de novo sob o sol.

A maldade é uma falha inata da natureza humana. Ignorar isso, seria ignorar a nós mesmos, e, tentar combater certos males de maneira puramente conciliadora pode, muitas vezes, por provocar tragédias ainda piores do que o mal anterior. No entanto, não se deve esquecer o valor do diálogo e das virtudes do homem, que também são armas na guerra contra o mal.

Dessa forma, a série consegue mirar e acertar em vários alvos sem se aprofundar muito em alguns pontos, deixando para que o espectador veja e reflita sobre o que seria o mais correto a ser feito. No entanto, tal como nas cenas de abertura, em que ouvimos o discurso do Obama no seu recebimento do Nobel, podemos intuir uma conclusão: o mal existe e há males que precisam ser combatidos – não com diálogos, mas com armas e pessoas capazes, em uma guerra simétrica (conceito usado diversas vezes durante a série). E para finalizar o texto, completo às linhas de Obama, com o que foi dito na mesma ocasião:

“Não se enganem: o mal existe. Movimentos pacíficos não teriam detido o exército de Hitler. Negociações não podem convencer a Al-Qaeda a baixar as armas. Dizer que o uso da força é necessário, às vezes, não é cinismo: é o reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão.

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