Autor: Ed Palamone
Páginas: 100
O tempo transcorrido desde que abandonamos o mundo real, constituído pelas pessoas vestidas, estava tão distante que parecia fora do nosso alcance.
História do Olho, Georges Bataille
O cenógrafo Gringo Cardia afirma que “toda revolução social vem de dentro do cidadão”, no que parece uma corruptela da conhecida máxima, em tom alegórico, de Gandhi: “toda revolução vem de dentro”. Isto, me parece, joga por terra a ideia de que uma revolução, em termos absolutos e utópicos, é possível para um coletivo, para uma sociedade, afinal, a menos que internamente todos vivam uma revolução, ela será nada mais de um remendo, um gesto, jamais a superação de todos os paradigmas em troca de um novo.
A Revolução dos Bichos, de George Orwell, é uma espécie de tradução – ou radiografia – dos movimentos históricos de uma série de tentativas de revolução que presenciamos no século XX. Primeiro, o gesto de romper com o sistema tal como ele se impõe e, depois, a reorganização deste novo em formas semelhantes ao que havia anteriormente: uma máquina burocrática, com viés de corrupção e autoritarismo, e um acordo tácito entre as partes – mesmo as discordantes – de que, aquele tema, é o único a ser tratado. Ah, é importante ressaltar: a palavra em todos estes lugares, se torna uma arma, um instrumento de controle.
Por outro lado, o sexo, o erotismo e as possibilidades do corpo, desde o pensamento de Marquês de Sade, passando por Bocage e Gregório de Matos, chegando até as investidas na filosofia de Georges Bataille, sempre foram percebidos como o gesto libertador maior. É que no final do século XIX, com a chegada da psicologia e do pensamento de Freud, os tabus sexuais se tornaram objetos de estudo, de atenção, e assim, além de penetrarem no campo político – que sempre estiveram como pano de fundo para o veto religioso – passaram também a fazer parte do campo comportamental, do indivíduo e, portanto, moral. Com os movimentos da contracultura, principalmente no maio de 68, este tema voltou à tona com a possibilidade de uma renovação da libertação do corpo, entretanto, no século XXI, ao que parece, retornamos a um pré-68, ou seja, a uma ideia tecnocrata, binária e burocrática do corpo. Ed Palamone trata isto de forma espetacular em A Revolução das Bichas.
A Revolução das Bichas, de Ed Palamone, é um romance-sátira que conta a história de um governo que, em meio a uma crise sexual, montou uma bolsa chamada Bolsa Garota de Programa. Para garantir os direitos dos desassistidos do sexo, todo cidadão cadastrado teria o direito de gastar uma quantia por mês com profissionais do sexo e, assim, ter sua sexualidade respeitada. Segundo o governo, este era “o cerne de todas as políticas públicas de bem-estar social. Era solução injetada direto na veia”.
Neste país, quem está no poder são as bichas, as transexuais, os gays, todos e todas liderados pela presidente Waldo Motta, ou Waldeusa, representante da força do Estado, garantidor deste direito. Em discurso inflado, a líder dizia:
“A partir de hoje, as viadas não vão mais precisar dar cinquenta a um, cinquenta a outro para poderem gozar. Receberão uma bolsa a título de reparação por tudo o que sofreram e deixaram de desfrutar no nível da sexualidade. A humilhação acabou! Vamos cadastrar uma legião de bofes par colocar à disposição da coletividade LGBT, não-LGBT e todas as pessoas carentes. Chega de depender de boys. As bichas estão no controle da situação. Revolução das Bichas!”
No entanto, este sistema, aos poucos, se mostra funcionando tal como todas as instituições estatais de nosso século, a partir da burocracia e, assim, uma série de acordos corruptos transforma o Bolsa GB (Bolsa Garota de Programa), principalmente na figura de Marina Borges, secretária da presidência em uma intenso projeto de disputa de poder. Para tentar tomar a secretária e engendrar um novo tipo de poder lá dentro, as bichas propõem o que seria uma contrarevolução na secretaria, retirando Marina Borges e seu assistente Igor e, em seu lugar, colocar Palamone, um rapaz com um passado um tanto quanto obscuro, principalmente após seu ex-namorado ser morto misteriosamente. No entanto, o que ninguém sabia é que Palamone estava ali justamente à procura de vingança, mesmo sabendo que enfrentar o Estado, sempre, é uma das tarefas mais árduas e desafiadoras que existem.
O mais interessante da escrita de Ed Palamone é que, como um camaleão, ele metamorfoseia sua linguagem em diversos tipos de escrita. Em alguns momentos, se utiliza da palavra burocrática das leis e dos decretos; em outros, faz uma narrativa fria, descritiva, nos moldes kafkianos chegando a montar tabelas e planilhas explicativas; já em outros se utiliza do jargão militante das redes sociais do século XXI; ainda se desdobrando em linguagens libertadoras típicas da comunidade LGBTQ ao tratar seus amigos, amigas e pares; por fim, há ainda uma linguagem que condensa todas as outras, uma linguagem da literatura que aponta para ela própria com suas assertivas irônicas e seus recursos pequeninos de metalinguagem que aparecem por detrás da sátira paródica ou alegórica.
Em Revolução das Bichas, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, sim, mas até a segunda página. As referências às estruturas políticas nacionais é latente, assim como todas as mazelas e dificuldades de um povo que parece estar sendo regido por uma série de acordos dos quais estão alienados. O pulo do gato, no caso, é que as próprias bichas que estão na ponta de propor a revolução, tal como na obra de Orwell, também são iguais partes desta máquina única de produzir oposições que garantem, pelo menos entre aqueles que brigam, as estruturas de poder.
Como toda sátira, e este é o maior mérito da obra, Ed não nos coloca a preferência por um lado da questão. A sensação ao se ler é que se tem um enorme emaranhado de situações burocráticas em que a ideia inicial – a possibilidade de que o corpo seja livre – se perde por de dentro desta espécie de mecanismos de poder do estado, como trata Foucault em sua obra. Eis, então, aquilo que torna a Revolução das Bichas potente: o uso desta duplicidade entre corpo libertário e linguagem burocrática se funde e temos, de um lado, um corpo burocratizado com uma linguagem erótica e, de outro, uma linguagem burocratizada com um corpo erótico.
Estas instâncias, assim colocadas, provocam uma espécie de síncope do sentido que não consegue se estabelecer em nenhum dos polos narrativos e vagam cambiantes produzindo micro-sentidos que nos escapam, fugindo assim, enquanto narrativa, dos próprios discursos de poder que critica. Creio ser essa a maior qualidade da sátira e, no fim das contas, do humor, compor um “neutro”, como aponta Roland Barthes, ou seja, uma estrutura que, por não se polarizar, é capaz de destituir as estruturas de poder de ambos os lados. O neutro engendra uma alteridade, um outro e, por isso, coloca a máquina em crise.
Revolução das Bichas é um breve romance, ou um longo conto, ou uma novela. O gênero pouco importa. O importante é o desmascaramento dos modos de funcionamento de poder, assim como de um pensamento majoritário vigente em nosso século – tanto dos poderes instituídos, quanto dos críticos a este poder – para, enfim, engendrar um estatuto de crise que possa, no fim das contas, apontar para pequenas zonas de afeto que, impossíveis dentro de si, escapam do interior de algumas linhas e ganham mundo.