A saga criada por J. K. Rowling é sucesso mundial, detém um dos livros mais vendidos de todos os tempos e uma das sagas cinematográficas mais bem sucedidas.
Todo mundo já ouviu falar em Harry Potter, o garotinho magro e franzino com uma cicatriz na testa que se descobre bruxo. No entanto, poucos conhecem outras histórias de bruxos e magia em escolas recheadas de mistério, menos pessoas ainda sabem que esta não é uma ideia original de Rowling. Parece que quando se vê alguma obra na literatura ou no cinema que pertença a toda essa temática, as semelhanças são ligadas a Harry Potter, e assim é criado uma estranha aversão por julgarem ser uma cópia. Mas não é difícil perceber que esta história do garotinho que sobreviveu não é nem uma das primeiras.
Bem, então quer dizer que qualquer história com bruxo e magia virou uma espécie de corrida? Quem chegou primeiro: parabéns; e só a este autor pioneiro entreguemos sua grande coroa de contribuinte mor da literatura fantástica?
Quando se fala de histórias-influência a tendência é pensarem “Ah, então é Senhor dos Anéis, certo? Por causa do Gandalf e todos os outros magos…” Decerto Gandalf é um personagem que se encaixa no quesito mago, muito bem por sinal, só que as histórias da saga de 7 livros de Rowling e da trilogia de Tolkien se assemelham não mais do que caracterizações abstratas. O que vamos tratar nos exemplos a seguir são particularidades concretas. Saímos agora do “quem é melhor: Gandalf ou Dumbledore?” e vamos numa análise mais profunda.
Obviamente, para escrever sobre este assunto foram necessárias muitas pesquisas (e aquisições caras de livros perdidos), assim, as conclusões que foram tiradas têm o objetivo de esclarecer e incentivar à leitura, de preferência fantástica. E essas 3 principais histórias que serão brevemente explanadas são fantásticas em todas as formas, e, visto que Harry Potter é sucesso mundial, com as mesmas temáticas, narrativas igualmente bem construídas, estilos de personagens, cenários, e inspirações quase-diretas, outro questionamento a ser levantado é: por que elas não chegaram nem perto do tamanho da saga potteriana?
Começando aqui de forma não-linear, com Neil Richard Gaiman.
O autor britânico consagrou-se por escrever Sandman, HQ publicado em 1988 pela Vertigo, com o selo adulto da editora DC Comics. Como diz em sua biografia, Gaiman não possui só Sandman como grande sucesso, ele foi também autor de obras como Deuses Americanos, Stardust, Coraline, O Livro do Cemitério, e o seu mais novo livro O Oceano no Fim do Caminho. Duas de suas obras foram adaptadas para o cinema: Coraline e Stardust, e em breve O Livro do Cemitério e Sandman também serão adaptados.
O sobrenatural, magias, mistério e figuras mitológicas são assuntos abordados com obrigação em suas obras. Ele é conhecido por humanizar entidades divinas, deuses atuam em situações do cotidiano sem deixar de lado a grandiosidade do “sagrado”, transmitindo também críticas sobre os mais diversos assuntos atuais. Outras vezes, suas histórias são para o público infantil, repleta de suspense e originalidade com abordagens sutis. E (de cabeça) há pouquíssimas histórias como no livro Coisas Frágeis que percebemos em alguns contos abordagens realistas sem qualquer temática sobrenatural direta.
No entanto, dentre as muitas criações de Gaiman banhadas de esoterismo, destaco aqui Os Livros da Magia.
Timothy Hunter é um garotinho inglês magro, de cabelo preto, que usa óculos, gosta de andar de skate e… e tem o potencial para ser o maior bruxo do mundo. Os Livros da Magia é uma série de pequenas HQs publicadas antes de 1990; enquanto o livro Harry Potter e a Pedra Filosofal foi lançado 7 anos depois. As HQs contam sobre Tim saindo pelos mundos vendo as vantagens e desvantagens de ser um bruxo, viaja através do tempo e escapa por um triz da morte na companhia de ninguém menos que John Constantine, entre outros personagens da DC, como Dr. Oculto e até mesmo o Sandman, pois pertencem ao mesmo universo. É uma história sobre a aceitação da magia, e como o destino pode ser lido de diferentes formas.
As semelhanças são grandes. Porém, a história é claramente diferente por crescer em sentidos opostos, enquanto Rowling escreveu mesmo que sem intenção para um público infantojuvenil, Gaiman apresenta as aventuras de Tim para um público pouco mais maduro. Acho interessante ressaltar também dentre os aspectos da forma (ou seja, das figuras mais explícitas, que compõem 90% dos aspectos semelhantes), que Tim Hunter possui uma coruja chamada Yo-Yo e numa das edições o garoto aparece com uma marca na testa. Segundo as críticas, ela traria proteção a ele.
As HQs também saíram depois em formato de livro, escrito por Carla Jablonski (com a licença de Gaiman), basicamente a história não muda. No início do livro há uma pequena introdução de Gaiman, e é engraçado ver que ele confessa que a princípio a ideia da narrativa era sobre um garoto estudando magia em uma escola secreta na Inglaterra:
“Quando eu ainda era adolescente, poucos anos mais velho que Tim Hunter neste livro que você tem nas mãos, resolvi que estava na hora de escrever meu primeiro livro. Ia se chamar Wild Magic (algo como Magia Maluca), e seria ambientado em uma escola particular britânica não muito importante, igual àquelas de que eu recentemente escapara. Mas seria uma escola particular britânica não muito importante que ensinava magia.”
Curiosidade: Darkstalkers (série de jogos eletrônicos de luta, produzido pela Capcom) ganhou uma série animada, produzida nos Estados Unidos. O enredo da série e a caracterização de alguns personagens são modificados e há a inclusão de um novo exclusivo: Harry Grimoire, baseado explicitamente em Tim Hunter – só que Grimoire é loiro.
Mas a ideia de Neil, por sua vez, não é tão original assim. Agora passamos para Diana Wynne Jones.
Se você achou que Tim Hunter era parecido com Harry Potter pelo visual, vai encontrar nos personagens das histórias desta autora o mesmo psicológico. À medida que o garoto bruxo de Gaiman se parece fisicamente com o menino da Rowling; os mundos, a mentalidade dos personagens e as situações que Diana cria em suas obras se parecem em escala bem maior. Em 1977 a também britânica Diana Wynne Jones escreveu Vida Encantada, o primeiro livro da série Os Mundos de Crestomanci. A narrativa da série Crestomanci envolve uma espécie de sociedade de poderosos magos com nove vidas, que recebem o título “Crestomanci”. A função deles é resolver os problemas causados pelo uso indiscriminado da magia nos mundos paralelos.
A história do livro se passa num castelo, onde dois órfãos em foco aprendem magia com outras crianças, parentes distantes. Não só nesta série, como em quase todas suas obras, podemos notar uma inclinação no modo de desenvolvimento que Rowling adotou na sua saga: o fato de aprender magia (num castelo, numa escola, por um tutor), existir regras quanto usar magia (idade e cargo social, por exemplo), os medos e incertezas quanto a ser um bruxo, atritos entre bruxos e não-bruxos etc, compõem o centro inicial e abstrato da obra. Este último exemplo ocorre nitidamente em A Semana dos Bruxos, outro volume, em que há um garoto chamado Charles Morgan que descobre ser um bruxo num mundo em que isso é uma prática censurada, principalmente em sua cidade (seria como uma grande família Dursley).
“Charles cambaleou para o centro do vestiário, perguntando-se qual tipo de milagre era aquele que conseguia fazer um garoto enorme olhar direto através de uma pessoa. Agora que sabia que isso havia acontecido, Charles tinha certeza de que o rapazinho não fingiu – ele realmente não vira Charles parado ali.
— Então o que foi que fez isso acontecer? — Charles perguntou às roupas anônimas penduradas. — Magia? — Sua intenção havia sido fazer uma pergunta sarcástica, o tipo de coisa que a gente diz quando desiste de entender alguma coisa. Mas, por um motivo qualquer, não foi assim que soou. Logo que ele disse isso, uma suspeita enorme e terrível que vinha tomando corpo, quase despercebida, no fundo da mente de Charles, como uma dor de cabeça chegando, foi para frente dos seus pensamentos, como uma dor de cabeça que já chegou. Charles começou a tremer outra vez.
— Não, não foi isso. Foi outra coisa qualquer! — disse. Mas a suspeita, agora que estava ali, exigia ser expulsa agora e de forma definitiva.”
(p. 71 e 72, Geração Editorial)
O próprio nome de Crestomanci se faz uma referência ao nome de Voldemort, ambos têm o efeito de “atender ao chamado”, com direito a saber a localização e transportar-se, causando certo medo. Embora a magia para Diana seja algo mais acessível e suas práticas pouco explicadas, o conceito de “separar vidas” também é uma narrativa parecidíssima, visto que as nove vidas do Crestomanci precisam ser separadas e colocadas em vários lugares para dificultar sua morte.
Como podem ver, não é sobre apenas uma problemática no desenvolvimento de um romance de fantasia que D. W. Jones é apontada aqui como uma das maiores inspirações de Rowling (mesmo que ela nunca tenha admitido), mas todo o conjunto de aspectos formais/estruturais e aspectos conteudísticos.
Neil Gaiman afirma abertamente ter se inspirado neste garoto franzino de óculos de olhar fulminante da Semana dos Bruxos. O autor, no entanto, antes de publicar o primeiro volume de Os Livros da Magia, resolveu pedir permissão (isso mesmo!) à Diana para utilizar a imagem de Tim Hunter, visto que, sem Charles, Tim nunca teria existido. Ela, por sua vez, riu e permitiu com imenso prazer, desejando-lhe todo o sucesso.
Agora vamos para a parte engraçada, respirem fundo. Vamos falar de:
Larry Potter and His Best Friend Lilly.
Sim, parece uma coisa feita só de brincadeira, mas não é, esse livro foi escrito por Nancy Kathleen Stouffer, em 1984. Encontrar informações sobre esta autora é por si só um trabalho árduo que compete com o trabalho de ler esta obra. Temos “Larry Potter” e “Lilly”, dois personagens da série Harry Potter (no caso de Lilly no livro é com dois “l”s, e a mãe de Harry só tem um). Eu não sei se posso apontar mais semelhanças do que essas.
Mas N. K. Stouffer começou a alegar direitos autorais e marca registrada que teriam sido infringidos por J.K. Rowling, por causa do livro The Legend of Rah and the Muggles, publicado também em 1984. Stouffer teria inventado os muggles (trouxas), espécie de humanóides não-mágicos, e o personagem Larry Potter, um garoto que usa óculos e tem cabelo preto, ajudando os seres de outro mundo. Stouffer sustenta até hoje que não são apenas estes exemplos e nomes similares mas que é “O efeito cumulativo de tudo isso combinado” com outras semelhanças que ela lista em seu site “Verdadeiros Trouxas” (Real Muggles) [ATUALIZAÇÃO: o site foi tirado do ar.]
Outro trabalho que vale a pena ser mencionado: Wizard’s Hall.
Jane Yolen acha que Harry Potter foi uma pequena cópia de sua obra publicada em 1991, sim, mas ela não liga muito para isso: “Eu sempre digo às pessoas que, se a Sra. Rowling quisesse me fazer um cheque gordo, eu iria aceitá-lo.” A questão é que temos de semelhança apenas ambientações, quadros que se movem, professores misteriosos, o peculiar clima de mistério, a personalidade dos garotos, ambos confrontando o repetitivo Mal da Fantasia (“O Lorde das Trevas”), e o fato de ser um romance de aprendizagem e crescimento, chamado de bildungsroman. Nada mais que isso.
Ainda não termina por aqui. Eis uma breve explicação da obra The Worst Witch (A Pior Bruxa).
Lançado em 1974, a história se foca numa garotinha chamada Mildred Hubble, ela vai para uma escola de magia e é a pior aluna. Existe uma matéria americana bem longa que disseca todas as semelhanças desse livro e também filme, fazendo comparações de momentos e personagens exatos de ambos os livros. Alguns deles, podemos citar aqui numa lista:
— Tanto Mildred quanto Harry encontram no primeiro dia de aula um rival loiro, rico e abusado;
— ambos têm propensão para quebrar regras e se livrar delas;
— ambos têm aulas de voo em vassouras (no filme o cenário é impressionantemente igual);
— a semelhança de Rony e Hermione consolidadas em Maud, a fiel amiga de Mildred. Como Hermione, ela é estudiosa, e como Rony, ela vem de uma família antiga de bruxos não muito rica ou “prestigiosa”;
— ambos têm professores severos e assustadores. Harry tem o Profº Snape, e Mildred tem a Sra. Hardbroom;
— ambos têm diretores sábios e solícitos caso se metam em encrencas. Harry tem Dumbledore, e Mildred tem a Sra. Cackle;
— o chamado “Grande Mago” é o equivalente ao Gilderoy Lockheart, pomposo e fútil.
O mesmo site aponta a resposta para a grande questão da matéria aqui presente em termos mais, digamos, jurídicos: “Então quais aspectos são domínio público?”. E com essa pergunta, podemos voltar àquela do começo “Agora tudo que envolve magia é uma cópia de Harry Potter?” Certos elementos estão, obviamente, em “domínio público” fora do patamar jurídico, são ideias já tão difundidas que não pertencem a ninguém em específico, e isso se constitui basicamente de crenças populares e mitologias.
“A ideia de um garoto chamado Harry Potter, ou algo semelhante, que está envolvido em magia tem flutuado em torno de anos nas mídias. Rowling afirma que suas ideias apenas surgiram em sua cabeça, aparentemente do nada…” (Internet Archive Wayback Machine)
Para aqueles que se interessaram, existem outros mundos de bruxaria, magia e escolas mágicas, como Terry Pratchett e sua Universidade Invisível na série Discworld; Michael Ende e o livro A Escola de Magia e Outras Histórias; até o filme The Troll, o qual um garoto se chama exatamente Harry Potter e a trama envolve magia; Adrian Jacobs com Willy – O Mago, que narra um torneio semelhante (igual, na verdade) ao Torneio Tribruxo, que inclusive Jacobs também processou Rowling por violação de direitos autorais; Susan Cooper com a série The Dark Rising (Rebelião das Trevas), o qual fala sobre um garoto de 11 anos que descobre ser o portador de muita magia etc, etc. E estes são os exemplos perfeitos de algo que não passa do arquétipo bruxo-magia-escola-crescimento. As histórias são trabalhadas na crença popular, suas similaridades são recursos que qualquer um com o mínimo de influência ficção-fantástica projetaria em suas narrativas. Em outras palavras, essas últimas citadas não têm semelhanças suficientes para chamar atenção ou sequer admita-se dizer que trouxe inspiração à Joanne.