A novela da Globo O Cravo e a Rosa já foi exibida uma série de vezes pelo canal, tanto em sua grade de inéditas como no Vale a Pena Ver de Novo. A ironia latente, nos deixa a pergunta: Vale a pena ver de novo uma novela global ou será Shakespeare que, mesmo depois de 400 anos, ainda continua a dizer coisas ao nosso tempo que se reatualizam em nosso imaginário de suas histórias? Deixemos a Rede Globo e a relevância das novelas de lado, pois esse não é o tema do presente texto, e tentemos perceber como que a tradição shakespeariana se coloca diante de nós e apresenta-se dentro de um dos gêneros dos mais populares de nossa sociedade. Vejamos também como O Cravo e a Rosa consegue empreender tamanho sucesso a ponto de entrar para um seleto hall de novelas reexibidas pela terceira vez. É… Parece que sim. Shakespeare é alguém que vale a pena ver de novo.
É comum que se veicule a imagem de Shakespeare ou às suas tragédias, gênero reconhecido como “superior”, ou à sua lírica, poemas amorosos em direção a uma amada. No entanto, seu repertório de comédias também é vasto, no qual peças como A Megera Domada, Sonho de uma Noite de Verão e Muito Barulho por Nada, atravessa outras questões comuns ao seu mundo, longe da complexa solução trágica contida em Hamlet, Macbeth ou Romeu e Julieta. A verdade é que, embora a comédia esteja sempre sendo colocada como gênero menor e, por conseguinte, pior, foi a partir dela que todos os gêneros atuais se configuraram. Não se pode falar no drama atual, tanto das novelas, como do cinema, sem pensar na estrutura cômica. Até a literatura é basicamente fruto desse elemento cômico, pelo menos na forma, em que os primeiros passos das narrativas em prosa se dão pelas novelas cavalheirescas, principalmente a de Cervantes.
Além disso, o The Globe, palco principal do teatro elisabetano, era uma forma de teatro absolutamente popular que servia a todos os tipos de público: primeiro, os “poleiros”, a parte mais baixa, onde os mais pobres assistiam; mais acima as arquibancadas para uma pequena burguesia, camarotes para a aristocracia; e, finalmente, o ponto central, para onde tudo se focava: a cadeira da rainha Elizabeth, figura frequente em quase todos os espetáculos. Esse caráter miscigenado no público incorporava-se também à cena, tanto que era de praxe que em toda peça houvesse desde cenas trágicas, faladas, sofridas, até cenas cômicas, de humor fácil, além de batalhas de capas e espada, com muita ação.
É esse o pano de fundo no qual Shakespeare está ancorado: E agora, e a novela? O Cravo e a Rosa foi escrita por Walcyr Carrasco, adaptada da peça A Megera Domada, uma das primeiras do autor inglês. No original de Shakespeare, Lucêncio quer casar com Bianca, filha mais moça de Batista, no entanto o pai dá como condição para o rapaz que sua filha para se casar, precisa antes que sua irmã, Catarina – a megera – case-se antes. Assim, ele sai à procura de um pretendente para a moça. Nesse momento, aparece Petruquio, um nobre que beira a falência, o qual aceita de pronto a tarefa de casar e amansar a fera. Contra a vontade, o casamento se dá e o marido faz que a esposa incontrolável passe por diversas privações e humilhações até se colocar na posição de boa companheira.
Deixando a visão machista da peça de lado, pois era comum tal fato naquela época, a peça se dá a partir de vários elementos cômicos como os enganos, os disfarces e as peripécias. Catarina tem uma língua ferina, incomum nas garotas de seu tempo. E esse é o ponto no qual Walcyr Carrasco apoia-se para a realização da novela:
São Paulo, década de 20. Cidade ainda meio urbana e meio rural, início do movimento feminista e fortalecimento da imprensa. Petruchio (Eduardo Moscovis) é um fazendeiro rude que se vê ao ponto de ter de vender as terras herdadas por seu pai. Resolve, então, amansar a feroz e neofeminista Catarina (Adriana Esteves) para conseguir manter suas posses. Em meio a brigas, gritos, insultos e objetos atirados, Petruchio e Catarina se casam e vão morar na fazenda. “Meu favo de mel”, como ele chama sua amada esposa, começa a virar um mote dos dois que, aos poucos, começam a se apaixonar e a tornarem-se, finalmente, um casal.
O que há de mais atual na novela e que nos faz chamar Shakespeare de um contemporâneo (termo retirado do livro Shakespeare, nosso contemporâneo de Jan Kott) é o fato de que o poeta coloca a base de suas tramas a partir de dois pontos: a subjetividade, ou seja, nossos sentimentos individuais, e as relações sociais exteriores. Os dois elementos na obra do autor entram eternamente em debate, em conflito, às vezes chegam ao ponto máximo e se autodestroem, como nas tragédias, e, às vezes, o mundo parece mais confortável e tudo se assenta, como nas comédias. O que interessa em tudo isso é a perenidade dos temas e das formas, e a capacidade que elas têm de se metamorfosearem em campos de gêneros, temas e histórias tão díspares. Shakespeare parece, algumas vezes, mais que um contemporâneo, mas alguém que ainda está longe, sempre a dois passos a frente de nós.