Entrar no cinema e ser recebido, na escuridão da sala, por aquele letreiro clássico pelo qual nós adentramos várias vezes é a primeira emoção que Animais fantásticos e onde habitam concede ao espectador. Permeado por sensações de nostalgia, emoção, uma alegria inocente, choque e tensão no desfecho, o filme funciona como uma boa história contada. Em vez do órfão bruxinho Harry Potter, acompanhamos Newt Scamander em 1926 chegando em Nova York com sua mala cheia de criaturas fantásticas e uma cidade em estado de intolerância.
Neste filme, o protagonista é o doce pesquisador Newt Scamander, autor do livro Animais fantásticos e onde habitam, usado pela geração de Harry Potter nas aulas de Hogwarts. Voltamos ao tempo para presenciar o crescimento deste pesquisador e os desafios que ele enfrentou. Em sua maleta existem várias criaturas as quais ele cuida com amor e devoção: os fofinhos e simpáticos Pelúcio e o Tronquilho, o imponente Pássaro-Trovão, o fascinante Occamy, entre outras. Não são criaturas que devem ser domesticadas ou destruídas. E Newt prova isso, ele defende essas criaturas do mundo. Ao mesmo tempo em que se protege deste mundo que julga um pesquisador com ideias diferentes, Newt protege criaturas respeitando e conhecendo as suas particularidades. Desta forma, Animais fantásticos pode ser também uma bela história sobre amor e devoção.
Esta beleza se encontra também na temática, na maneira com que ela é conduzida por personagens interessantes e por excelentes atores. Temos um poderoso grupo formado entre o pesquisador Newt Scamander (Eddie Redmayne), a ex-aurora Tina Goldstein (Katherine Waterston), a bruxa com habilidades de legilimência e irmã de Tina Queenie Goldstein (Alison Sudol) e o não-mágico (trouxa) que sonha em abrir uma padaria Jacob Kowalski (Dan Fogler). O que há em comum entre os quatro personagens é que, sutilmente, percebemos que passaram por situações em que seus sonhos ou seus dons foram renegados, ou que foram julgados por quem eles eram, tanto quanto as criaturas que Newt protege. Por isso, a amizade deles se torna forte, um elo que o filme não precisa ficar reafirmando. É um elo que está ali e se mostra suficiente para conduzir a trama.
O poder do roteiro de J.K.Rowling é que ela cria atmosfera e personagem como ninguém. A trama de Animais fantásticos pode parecer simples em um primeiro momento. Mas é com sutileza que a autora deste universo cria algo independente de Harry Potter. Ela dialoga com estereótipos e certos clichês do cinema, mas dá algo mais aprofundado e verdadeiro a eles quando subverte detalhes. Animais fantásticos parece se equilibrar neste risco de tornar Jacob apenas um alívio cômico, de Newt ser apenas a figura do nerd, de Tina ser a intelectual reservada e Queenie a figura feminina para embelezar a cena. Contudo, eles vão revelando mais camadas do que isso, e de forma sutil. Mais camadas do que muitos filmes blockbusters apresentam de seus personagens.
Junto a isso, um ponto que precisa ser elogiado é a ambientação do filme. Como roteirista, J.K.Rowling soube criar uma Nova York bruxa em meio aos problemas dos não-mágicos (ou trouxas) que conhecemos muito bem, como o clima pós Primeira Guerra Mundial, a lei seca e a aura dos anos 20. Misturado à decadência de prédios em tom ocre, de multidões vestindo preto e longos sobretudos, de ruas povoadas, prédios de mármore e becos cheios de música, a Nova York que se desvela na tela é bela e fascinante. E J.K. não deixa de expor o clima de tensão na sociedade criada por ela, onde ser bruxo era condenável e urgente se esconder pela própria segurança, onde leis pareciam segregar mais do que proteger.
Ainda em relação à Nova York, é possível argumentar que a cidade poderia ter mais brilho e uma paleta com tons mais abertos nesses ambientes, para que dialogassem com o brilho próprio do universo mágico que vem da maleta de Scamander, pois em alguns instantes a paleta tende a cores mais sóbrias. Nota-se, assim, como a direção de David Yates opõe mais os universos do que os agrupa. O mundo da maleta de Scamander e o dos bruxos é diferente daquela Nova York não-mágica.
Em relação aos filmes anteriores de Harry Potter, a direção de David Yates em Animais fantásticos está mais madura e um pouco mais autoral. Mesmo assim, falta ao diretor criar um olhar mais particular para expor a história, que fosse além das tomadas de cena mais comuns. Ele ganha mais força quando compõe cenas de ação grandiosas, quando dá dignidade às criaturas mágicas ou quando coloca o personagem ao canto, expondo uma linguagem e uma sensação do personagem com aquele take. E isso Animais fantásticos poderia ter exposto mais. Ou seja, a direção de Yates é bela quando abre o mundo das criaturas fantásticas ou quando apresenta a ameaça do filme, preenchendo a tela com tensão e choque.
O clímax do filme é anunciado com poucos sinais durante a trama. Ele funciona enquanto situação de choque. Há instantes, no filme, em que sentimos o quão Animais fantásticos é adulto ao falar de pena de morte, ao expor a violência, o drama de personagens renegados socialmente, e ao dar um corpo denso ao horror que se instala na cidade. É uma tensão na qual o espectador, de fato, mergulha. E o filme acaba por misturar e explorar diversas sensações no decorrer da trama, sem soar confuso. Porém, é preciso dizer que Animais fantásticos foca mais nas relações humanas e em apresentar as criaturas, do que anunciar uma trama de tensão e mistério composta com clareza desde o início. Isso pode agradar ou desagradar alguns espectadores, pois o enredo pode ser mais atmosférico do que uma história marcada por fatos.
Portanto, em meio a todo o universo deste novo filme, é Newt quem conduz a redescoberta desta magia que tanto cinema quanto literatura conseguem despertar. O amor com que ele vê as criaturas, e a relação de seus amigos com elas, são os nossos olhos para o universo potteriano. Newt convida, com a atuação certeira de Eddie Redmayne neste papel, a relembrar uma sensação adormecida, contudo, sem deixar de ganhar uma vestimenta nova. Animais fantásticos consegue ser um filme eficiente ao contar uma história bem amarrada. O que pode decepcionar um pouco é que o filme não deixa claro quais pontas irá retomar nos próximos filmes da saga. Ele deixa no ar essa sensação de risco, pois estamos diante de uma história desconhecida, com receio de que cinco filmes desgastem o enredo ou que não se repita a sensação deste primeiro filme. Mas parece que o universo de J.K.Rowling vale para que enfrentemos essa dúvida. Pois, ao adentrar na maleta de Newt Scamander, a sensação é de gratidão por ter povoado o universo da autora desde os oito anos de idade. E ver que, no adulto Newt Scamander, ainda ressoa aquela emoção de quem entra em Hogwarts pela primeira vez.
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