A primeira canção de Bob Dylan que escutei foi a excelente Motorpsycho Nightmare, na voz de um grande amigo. Ouvi ele cantá-la – em um inglês escorregadio e sorrindo de felicidade – muitas e muitas vezes durante a adolescência. Mais tarde, descobriria que a canção era baseada no filme Psicose, do cineasta estadunidense Alfred Hitchcock – um dos meus filmes favoritos de todos os tempos –, e que parodiava os vendedores ambulantes que, durante os anos 50, perambulavam de uma ponta à outra nos EUA. É evidente que, com 15 ou 16 anos, ainda não sabíamos de nada disso e só nos sentíamos atraído pelo tom peculiar e sarcástico da canção. Além disso, esta primeira imagem já evocava certa atmosfera clandestina: havia alguma coisa muito sugestiva na chegada desse narrador anônimo em uma casa escura, onde era esperado por um desconhecido armado. Tínhamos aí, portanto, toda a tensão de uma das histórias de terror que tanto nos interessavam naquela época – mas, ao mesmo tempo, percebíamos um ritmo vívido e alegre que nos cativava. Durante anos sustentei a mania de sempre cantar Motorpsycho Nightmare para rir em voz alta, como fazia junto desse amigo na adolescência.
No entanto, logo descobriria que não éramos os únicos que sorriam ao cantar uma canção de Dylan. Afinal, Allan Ginsberg já havia dito que escutar Dylan era “sentir como uma alma carrega a tocha dos Estados Unidos”. Uma poderosa metáfora para resumir a competência desse artista que, durante quase 4 décadas, dedicou seu empenho, sua criatividade e sua perseverança para traduzir os Estados Unidos profundo em alguma coisa mais densa e camaleônica do que algo meramente estereotipado. Com seu violão nas costas, um precoce entendimento muito profundo sobre o peso histórico da época em que acabou por viver e principalmente com essa inteligente perspicácia que permitiu que pudesse compreender as nuances da cultura em que nasceu, Dylan tornou-se um trovador moderno: um símbolo da cultura pop quase sem querer e quase sem se esforçar para isso.
Mais de uma vez já se afirmou que Dylan com frequência esquece-se de quem é, como se fosse apenas mais um personagem de suas intrincadas canções/narrativas. Que, embebido pelo ardor que sente pela música e pela fervorosa admiração que seus fãs o dedicam, por vezes encontra-se perdido e sem nome em meio à sua própria obsessão artística – uma ideia que não poderia ser melhor definida do que pela vontade de transcendência do cantor e compositor natural de Minnesota. Para Dylan, a música foi sempre um veículo, uma construção elaborada sobre um tema e uma ferramenta de expressão cultural. Em seus momentos mais festivos, sobretudo durante a sua juventude alucinada, que deixou um saldo positivo por meio de uma coleção de canções exuberantes, Dylan deixou muito claro que gostaria de construir um olhar sobre a música muito mais poderoso do que aquilo que era possível enxergar superficialmente, ou seja, uma percepção inacabada e profunda sobre os alcances da música como ferramenta de comunicação e expressão. Mas, para além disso, parecia sustentar desde o início de sua carreira uma reflexão muito específica sobre o que a música pode ser como reflexo da sociedade que a constrói: a música como legado, como herança e, sobretudo, como olhar para além do tempo como elemento social.
Durante quase 4 décadas, Dylan construiu sua carreira musical baseada em uma combinação entre a cultura popular e algo mais significativo. Ou essa foi, ao menos, a sua intenção, depois de declarar que a “cultura popular geralmente chega ao seu fim muito rapidamente. Enterram ela em sua cova”. Uma reflexão que engloba não apenas o olhar frágil por meio do qual Dylan analisa as suas próprias obras, mas também uma espécie de concepção sobre o seu legado que parecia ter muito clara desde o começo. Para Dylan, cantar, e principalmente escrever a sua própria música, é a apoteose da boa experiência criativa. E ele deixou isso claro em cada oportunidade possível, por meio do olhar aguçado e quase sempre crítico que sua música analisa a sociedade, seus fundamentos e suas particularidades. Com todo o seu ar de trovador moderno, a insólita mistura entre intelectual e arte de rua, a música de Dylan desbanca qualquer tentativa de classificação a priori de suas intenções. Como se se tratasse de uma percepção da música como uma ideia enraizada do que supomos que ela é: esse reflexo dinâmico e elementar sobre a identidade conjuntiva da cultura.
Em um de seus relapsos ególatras, Dylan chegou a confessar que, durante boa parte da sua vida, lutou arduamente contra a possibilidade de cair no esquecimento e, também, com a necessidade de transcendência, como se ambas as coisas mantivessem uma relação intrínseca em seu trabalho artístico. “Queria fazer algo que sobrevivesse junto aos quadros de Rembrandt”, confessou em uma ocasião, tentando explicar sua busca por comunicar algo mais elaborado do que um mero olhar superficial sobre a realidade.
E é perfeitamente possível afirmar que ele conseguiu realizar uma série de obras imperecíveis. As obras de arte de Dylan são suas canções, uma obra de longa duração, de especial profundidade e com uma enorme capacidade de trabalhar a tensão emocional, marcadas todas por essa vibrante sensação de angústia existencial que transforma seu legado musical em algo muito mais difícil de compreender do que pode parecer à primeira vista. Misterioso, tímido e introvertido, o insólito Dylan transformou suas canções e seus discos em uma comunicação direta, fecunda e na maioria das vezes extremamente intensa com um público que possivelmente não o compreende com clareza, mas que, ainda assim, continua celebrando a sua rara capacidade de contar a verdade a partir de um olhar à margem. Cada uma de suas canções parece recontar suas muitas experiências de crises sentimentais e espirituais, doenças e enigmas. Talvez seja o único músico estadunidense que segue negando-se a se submeter às obrigações da fama tradicional e só abandona seu isolamento voluntário para continuar percorrendo as estradas de seu país tentando encontrar as canções que deseja cantar, em uma turnê interminável que já o levou inclusive a ressignificar as origens de sua concepção espiritual da arte. Mas, ainda assim, segue empunhando seu violão, reserva o seu tempo para repassar suas canções como um complexo emaranhado de emoções e reflexões sobre as dores do cotidiano, a angústia da injustiça social sob um ponto de vista muito claro em relação à desigualdade e à fragmentação de seu país. Em meio a tudo isso, Dylan insiste em conceber-se como uma testemunha, como um contador de histórias, um peregrino sem nome avançando em direção à próxima estrada.
Dylan e a palavra
Um dos livros mais conhecidos de Dylan é sem dúvidas uma compilação de seus escritos, canções e desenhos que tentou recuperar, sem muito êxito, a obra de um artista prolífico sempre empenhado em avançar apesar de sua paulatina desintegração emocional. Publicada na década de 70, a obra resgata todas as canções de Dylan até o álbum Blood on the Tracks. Trata-se, portanto, de uma reflexão imprescindível para se conhecer a evolução espiritual daquele que é considerado um dos músicos mais influentes do século XX. Já nos anos 2000, foi editada aquela que é considerada a continuação imediata dessa análise sobre a repercussão de Dylan na cultura popular. Intitulada Bob Dylan, essa obra reúne as centenas de canções escritas pelo compositor desde o seu primeiro álbum, em 1962, até 2011. Complexa, árida e camaleônica, a obra de Dylan é um reflexo de uma sociedade estadunidense extremamente mutável, que ao longo dos anos se transformou a todo vapor na medida em que as mudanças sociais e culturais criaram toda uma nova forma de assimilação e compreensão em relação à identidade do artista. E Dylan parece ter conseguido midiatizar o poder musical das diferentes mudanças que sofreu intimamente e refleti-las em direção ao trajeto inevitável do mundo que o rodeia – uma conclusão anedótica sobre o poder da música como parte de uma série de questionamentos formais sobre a identidade contemporânea.
Dylan é, talvez, o músico que mais conseguiu aglutinar as inquietações de sua geração em um curioso percurso pela história emocional de um país em plena construção musical. Enquanto artista, assumiu a identidade dessa evolução, dessa anomalia secreta entre a individualidade e algo mais complexo que definiu a solidão do Homem moderno. E é justamente por esse motivo que muitos o admiram, o temem ou o invejam, mas que todos concordam, invariavelmente, que ao menos a sua contribuição para o universo musical é lendária. “[Dylan] É um desses personagens que surgem somente a cada 300 ou 400 anos”, afirmou Leonard Cohen, um de seus muitos admiradores, e talvez o músico mais influenciado por ele. Dylan leva consigo o espírito da contradição de uma “geração perdida” – essa grande sucessão de dores e tragédias que sustentaram o imaginário das décadas de 60 e 70 -, e consegue isso criando uma catarse coletiva que engloba o motivo pelo qual a música da segunda metade do século XX tornou-se inesquecível e entrou para a história. Usou o folk como arma política e criou uma linguagem poética para metaforizar o sofrimento íntimo de uma sociedade dilacerada por seus próprios erros. Há também muito de um grito de desespero, angústia e tentativa de expiação na obra de Dylan, estruturados pelas lentas transformações do tempo e espaço intelectual que avançam.
Anárquico, sensível, arrogante e sutil. É muito complicado definir um artista que experimentou em todos os registros e ao longo dos anos adquiriu uma maturidade enigmática em direção a algo mais profundo. Para adentrar no universo proposto por Dylan, deve-se antes buscar analisar o poder da palavra como uma expressão de pensamentos profundos, da poesia para assimilar os medos e as esperanças mas, sobretudo, refletir sobre o peso desse seu olhar cuidadoso e crítico em relação ao que o circunscreve, isto é, sobre essa percepção dual e profunda da identidade social que sua arte parece refletir com tanta profundidade.
Dylan, muito além dele mesmo
É muito provável que neste exato instante ainda se esteja debatendo nas redes sociais e nos círculos literários sobre a idoneidade da premiação concedida pela Academia Sueca ao legado artístico de Bob Dylan. No geral, a polêmica questiona se suas canções têm a qualidade suficiente para transcender o universo musical e “alcançar” a literatura. O que é evidente, no entanto, é que a decisão tomada pelos responsáveis pela premiação não está baseada em um aparente erro de interpretação: durante seus mais de 30 anos de carreira, Dylan foi reconhecido diversas vezes, inclusive do ponto de vista da estética literária, por suas composições musicais. Já em 1990, por exemplo, o músico recebeu a Ordem das Artes e das Letras francesa pelo que já naquela época se insistia em considerar como “uma realização de grande alcance para a difusão da música como meio de expressão formal”. Em 2008, Bob Dylan ganhou o Prêmio Pullitzer, concedido pela Universidade de Columbia, pelos jornais Washington Post, New York Times e pela agência Reuters. Segundo o trio de pioneiros em termos de jornalismo e artes estadunidenses, Dylan merecia receber a premiação “por seu profundo impacto na música e na cultura popular dos EUA, graças ao poder poético de suas composições”. Tornou-se, assim, o primeiro músico de folk/rock a receber essa distinção. Um ano antes, o músico havia sido agraciado com o Prêmio Príncipe de Astúrias das Artes. No texto de justificação da premiação produzido pelos jurados, destacou-se o caráter “austero nas formas e profundo nas mensagens” de Robert Allen Zimmerman (nome verdadeiro sob o pseudônimo Bob Dylan), que combina “a canção e a poesia em uma obra que faz escola e determina a educação sentimental de milhões de pessoas”. Sua obra, acrescentou-se, é “o reflexo fiel do espírito de uma época que busca respostas no vento para os desejos que moram no coração dos seres humanos”.
Assim, não é a primeira vez que os méritos poéticos e literários da obra de Dylan são reconhecidos, apesar das críticas ferrenhas quando se sugere que sua música possa ser considerada como uma obra literária. Com frequência, a pergunta sobre até onde alcança a influência de Dylan sobre a cultura popular e seu peso como “arte em estado puro” é debatida e parece ser motivo para uma análise sobre os delicados limites das diferentes referências que transformam sua obra em um híbrido de várias tendências. No entanto, esse questionamento segue sem resposta definitiva, talvez porque o próprio Dylan (que não vai a quase nenhuma premiação e que prefere tocar em palcos de madeira a dar declarações) não saiba ou não queira respondê-la. Trata-se de um mistério dentro de outro mistério, e de uma reflexão por vezes quase inquisitória sobre a natureza da arte – em qualquer uma de suas formas – como representação cultural. Enquanto isso, no entanto, Dylan segue cantando e encantando, escrevendo e tentando encontrar mais uma história para contar em letra, música ou onde quer que seja, quase como um sobrevivente de sua própria história a despeito de toda a polêmica envolvendo a sua arte.