O terror tem diversas vertentes e pode funcionar de várias formas. Uma das melhores é quando atinge o leitor/espectador mostrando que o pior a se temer não está do outro lado da porta, mas do outro lado do espelho. O terror psicológico assusta ou perturba de uma forma única, mostrando que os piores monstros podem viver em nós mesmos. E são poucos os filmes que mostram isso são majestosamente quanto The Babadook – que, de acordo com o William Friedkin, diretor de O Exorcista, é uma das mais apavorantes obras do cinema dos últimos tempos.The Babadook, escrito e dirigido pela cineasta australiana Jennifer Kent, trata inicialmente sobre a agonia causada a uma mulher e seu filho por um livro estranho, que aparece no nada na casa da família. É um livro infantil de pop-up, aqueles que as imagens saltam do livro com algum movimento; porém o livro tem ilustrações e frases um tanto perturbadores, em que a criatura diz que o leitor irá encontrá-lo mais cedo ou mais tarde e desejará estar morto (leitura perfeita para as crianças antes de dormir, certo?). O menino encontra este livro e insiste que sua mãe leia para ele. Depois disso, a criança fica obcecada com o livro, insistindo que vê o monstro do livro pela casa e planejando formas de capturar o monstro.
A mãe da criança, que perdera o marido em um acidente de carro enquanto os dois iam para o hospital para o nascimento do menino, começa a ficar cada vez mais perturbada com o comportamento do filho, além de nunca ter superado a morte do marido. A presença do monstro torna-se cada vez mais real, tanto para o menino quanto para a mulher, o que torna gradualmente evidente ser é uma espécie de manifestação – seja sobrenatural ou psicológica – da perturbação da família com a morte do pai do garoto, cuja ausência é tão forte que seja a ser algo presente no dia a dia dos dois. Enfim, é um filme que envolve e consegue assustar por mostrar exatamente como o psicológico dos personagens cria e alimenta monstros que acabam quase os dominando – o que, apesar de ser mostrado à primeira vista como algo fantástico, é assustadoramente real. Mas paremos por aqui de comentar sobre o filme, afinal o foco deste artigo não é analisar esse filme, mas a temática a qual ele apresenta – o terror psicológico.
E o que Stephen King e Poe têm a ver com isso? (Imagino que alguém deve ter notado os nomes deles mencionados lá no título do artigo.) Começando por King: é um dos mais aclamados autores de terror dos dias atuais. Suas obras, em maioria, trazem personagens em conflitos um tanto assustadores, seja com cemitérios onde animais mortos voltam à vida, seja com hotéis assombrados ou algo mais envolvendo vida e morte e medo. Mas o que realmente mais assusta na maioria dos livros de King e, se bem observado, é a base de suas narrativas? Não são os fantasmas que habitam o mundo ou animais mortos-vivos, palhaços cruéis ou qualquer monstro externo, mas aqueles que habitam a mente do protagonista.
Em “O Iluminado”, o ápice do terror ocorre devido à crescente perturbação mental de Jack Torrance, no romance “Saco de Ossos” e no conto “Janela Secreta”, são em maioria as próprias memórias dos protagonistas que os assombram e os levam a vivenciar os horrores narrados. Stephen King já dissertou sobre o assunto, sobre os motivos de escrever terror e dos porquês de seus leitores terem esse fascínio pelo macabro. King inclusive escreveu um livro inteiro sobre o gênero do terror chamado “Danse Macabre”(traduzido como “Dança Macabra”). No início de “Dança Macabra, King diz uma de suas mais marcantes fases sobre o assunto, a qual talvez seja a forma mais verdadeira de explicar a arte da ficção de terror: “Inventamos horrores para nos ajudar a lidar com os verdadeiros”
Isso mostra um pouco como a arte do terror funciona: é uma espécie de truque psicológico, uma inversão, tornando tudo aquilo que mais apavora ou que quase enlouquece o autor ou o leitor e algo fictício, que assusta e até diverte durante a leitura do livro ou durante o filme e fica, pelo menos de alguma forma, preso à ficção. E é por isso que as melhores obras de terror são aquelas que refletem o psicológico do autor/eu-lírico/protagonista da estória. King também diz que”Monstros são reais e fantasmas são reais também. Eles vivem dentro de nós e, às vezes, vencem“. E esse é o elemento mais assustador de qualquer obra de terror: tudo aquilo, por mais sangrento e exagerado que possa ser em alguns casos, é real de alguma forma, vem de um lugar real da mente do criador e se conseguir afetar (seja assustar, perturbar ou ter algum impacto forte) um só leitor/telespectador que seja, é porque foi um trabalho bem executado de exteriorizar e ficcionalizar seus medos, receios ou conflitos internos – quando o trabalho é bem feito, aquilo que vem de algum lugar real e sombrio na mente do autor parece mais real ainda na ficção, ao mesmo tempo em que cria um distanciamento do conflito, dando-o forma fictícia, dando ao autor um certo controle sobre isso. Ou seja, o criador pega os monstros de sua mente e, antes que eles o controlem, os usa como marionetes para torná-los menos fortes. Portanto, a ficção de terror é um tipo de dissecação dos piores lados do psicológico do autor, é como ir até o subsolo da mente e usar tudo que encontrar lá para fazer ficção, assim tirando um pouco do peso de carregar esse subsolo por aí. Por isso as melhores ficções de terror contêm monstros que nada mais são além de um reflexo da mente do narrador – porque é essa uma das (senão a principal) origens da arte do terror.
Um grande exemplo disso é o caso dos contos de terror psicológico de Edgar Allan Poe, pois a maioria de seus narradores sofrem de males causados por suas próprias mentes perturbadas. O que há em comum entre os contos “O Coração denunciador”, “O Poço e o Pêndulo”, “O Gato Preto”, “Berenice”, “William Wilson”, “O demônio da perversidade” e muitos outros de Poe? A perturbação da mente do protagonista. O problema não é o gato preto parecer ressuscitar dos mortos, mas a influência que ele tem sobre o narrador; o problema não são os dentes de Berenice, mas o que eles causam no protagonista – e, portanto, o que o protagonista causa a si mesmo consequentemente. Os elementos externos nunca são algo claramente sobrenatural (algumas vezes não há nem suspeita de haver algo sobrenatural na narrativa), mas o que ocorre na mente do narrador e a forma como ele transforma o mundo ao seu redor em um circo de horrores é o ponto central que esses contos têm em comum, assim como o filme The Babadook, citado no início deste artigo, assim como nas melhores obras de King e de muitos outros grandes autores de terror. O mundo externo não é a causa do terror de maior impacto, mas sim o interior. A escuridão assusta pelo que revela, não pelo que oculta.
A fascinação em torno de obras de terror gira em torno de tais fatores: elas nascem de perturbações internas, de pesadelos, e tornam-se ficção como forma de aprisionar esses fantasmas em outro lugar ao mesmo tempo em que os libertando através da arte. Assim também liberta-se o leitor – ou telespectador, no caso do cinema – ao ver como tais abismos podem tornar-se fictícios e ser contemplados com uma espécie de medo ou perturbação controlável, pelo menos por enquanto, pelo menos enquanto houver palavras o suficiente para contê-los em forma de ficção.
Publicado originalmente em Literatortura.