Foe é uma das principais obras do autor Sul-africano J. M. Coetzee. Nela o autor faz uma recontagem da história de Robinson Crusoé, através da figura da náufraga Susan Barton. Susan sobrevive e se vê na mesma ilha de Cruso, um homem irascível e de poucas palavras, e seu fiel escudeiro Sexta-Feira. A obra, uma verdadeira reinvenção narrativa de Coetzee é, no fundo, uma grande conversa sobre as possibilidade de se montar e remontar a linguagem para se contar uma “história”. A própria figura de Foe, no caso, Daniel deFoe, aparece como alguém que recebe a história de Barton para conta-la e, no fim, ambos se encontram em um beco entre vida, arte e linguagem. O resultado é uma obra irretocável, de beleza singela, mas potente. Leia a resenha completa AQUI!
O NotaTerapia separou as melhores frases da obra. Confira:
Mas quem, acostumado à riqueza da fala humana, pode se contentar com grasnidos, chilreios e guinchos, com o latido das focas e o gemido do vento?
O coração do homem é uma floresta escura.
Para os negócios do mundo prosperarem, a Providência deve às vezes acordar e às vezes dormir, como fazem as criaturas inferiores.
O que é mais fácil: aprender a ver no escuro ou matar uma baleia e fervê-la em nome de uma vela?
Num mundo de acaso, existe melhor e pior? Cedemos ao abraço de um estranho ou nos entregamos às ondas; num piscar de olhos nossa vigilância relaxa; estamos dormindo; e quando acordamos, perdemos o rumo de nossas vidas. O que é esse abrir e fechar de olhos, contra o qual a única defesa é uma terna e desumana vigília? Não seriam as fendas e frestas através das quais uma outra voz, outras vozes falam em nossas vidas? com que direito fechar os ouvidos a elas? As perguntas ecoavam em minha cabeça sem resposta.
Peço que se lembre, nem todo homem que leva a marca do náufrago é um náufrago no coração.
Leis são feitas com um único propósito, ele me disse: ‘para nos impor controle quando nossos desejos se tornam imoderados. Contanto que nossos desejos sejam moderados, não temos necessidade de leis.’
Quando penso em minha história, pareço existir apenas como aquela que veio, aquela que testemunhou, aquela que ansiava por ir embora: um ser sem substância, um fantasma ao lado do corpo verdadeiro de Cruso. É essa a sina de todo contador de histórias?
Para dizer a verdade, e, toda a sua substância é necessário tranquilidade, uma cadeira confortável, longe de toda distração e uma janela pela qual olhar; e então o truque de ver ondas onde há campos diante de seus olhos, e de sentir o sol do trópico quando está frio; e na ponta dos dedos as palavras com que captar a visão antes que ela se desvaneça.
Sexta-Feira ainda pode absorver a riqueza guardada nas histórias e assim aprender que o mundo não é, como a ilha parecia ensinar, um lugar árido e silencioso (é esse o sentido secreto das palavras, o senhor acha: um depósito de memórias?)
Surpreende ao senhor como surpreende a mim essa correspondência entre as coisas como ela são e as imagens que temos delas em nossa mente?
O mundo está cheio de ilhas, Cruso disse uma vez. As palavras dele soam mais verdadeiras a cada dia.
A conversa não é simplesmente uma espécie de música em que primeiro um assume o refrão, depois o outro? Saber qual é o refrão de nossa conversa tem uma importância maior do que a de saber qual a melodia e a conversa como o amor? Quem se aventuraria a dizer que o que se passa entre amantes é substancial (refiro-me ao amor que fazem, não a que conversam), no entanto não é verdade que alguma coisa passa entre eles, nas duas direções, e eles saem refeitos e curados por um tempo de sua solidão?
Liberdade é uma palavra, menos que uma palavra, um ruído, um de uma multidão de ruídos que faço quando abro a boca.
Sexta-feira não tem nenhum domínio sobre palavras e, portanto, nenhuma defesa contra ser remodelado dia a dia em conformidade com o desejo dos outros. Digo que ele é um canibal e ele se torna um canibal; digo que é um lavador de roupas e ele se torna um lavador de roupas. Qual a verdade de Sexta-feira? (…) Ele é o filho de seu silêncio, um filho não nascido, uma criança esperando para nascer que não pode nascer.
Para mim a moral da história é que chega um momento em que devemos prestar contas ao mundo e depois para sempre nos contentarmos em calar.
Numa vida dedicada a escrever livros, muitas vezes, acredite, me perdi num labirinto de dúvidas. O truque que aprendi é fixar um sinal, uma marca no chão no ponto onde estou, de forma que em minhas divagações futuras eu tenho algo para onde retornar, e não ficar ainda mais perdido do que estou. Tendo fixado a marca, sigo em frente; quanto mais vezes volto à marca (que é um sinal para mim mesmo de minha cegueira e incapacidade), mais certeza tenho de que estou perdido, no entanto mais animado fico também, porque encontrei meu caminho de volta.
Em toda história existe um silêncio, alguma visão oculta, alguma palavra não dita, eu acredito. Enquanto não dissermos o não-dito, não chegaremos ao coração da história.
Liberdade é uma palavra como qualquer outra. É um sopro de ar, novela letras numa lousa. Nada mais é que o nome que damos ao desejo de que você fala, o desejo de ser livre. O que nos diz respeito é o desejo, não o nome.
Mas este não é um lugar para palavras. Cada sílaba, assim que escapa, é capturada, preenchida com água e dispersa. Este é um lugar onde corpos são seus próprios sinais.
Edição: Companhia das Letras, 2016