Hoje começamos no NotaTerapia um novo projeto: “Diálogos”. Nele, nós criadores do site, Luiz Antonio Ribeiro e Luisa Bertrami D’Angelo vamos fazer aquilo que o nome já diz: dialogar sobre um tema literário ou sobre qualquer tema que vier em nossa mente, for do nosso interesse e acharmos que tem a ver com a página. Ele funciona da seguinte forma, toda semana um de nós propõe um tema e escreve umas linhas sobre ele, então envia para a outra pessoa que lê e complementa também com algumas frases. Assim, vamos aos poucos construindo nosso diálogo ao redor do tema que escolhemos. O mais interessante, nos parece, é que podemos nos aproximar da arte da forma mais potente possível: abrindo um diálogo em direção ao outro, naquilo que podemos tocar e ser tocados pelo objeto artístico. Esperamos de coração que vocês gostem!
O primeiro tema foi escolhido por mim e é o amor em José Saramago, partindo inicialmente da obra Todos os Nomes. Confira:
LUIZ – Eu queria começar essa nossa série falando da ideia de amor em José Saramago. Conforme fui lendo as obras do autor, percebi que seu pensamento de esquerda estava muito presente: havia nas obras uma ordem coletivista do mundo. Vemos isso em Ensaio Sobre a Cegueira, A Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Lucidez, entre outras. Apesar disso, dentre elas uma diferente apareceu: Todos os Nomes. Eu percebi de cara que, em Todos os Nomes, havia um indivíduo, o Sr. José e que toda a trajetória da obra era a de um homem diante de sua primeira paixão. Mesmo que ainda sem nome, sem face – um alguém coletivo na multidão – havia um sujeito, sozinho, de um lado e do outro, o amor. Estava nascendo pra mim a ideia de amor do Saramago. Você também percebeu isso?
LUISA – Sim, sem dúvida! Todos os nomes é, com certeza, um livro de amor. Não só pelo fato de o Sr. José ir atrás de qualquer coisa que o leve àquela mulher, mas também (e principalmente) por como ele despende toda a sua existência para isso. Não que o amor seja um dar-se incondicional ao outro, mas é que o Sr. José se deixa ser totalmente atravessado por esse desejo de encontrá-la e, nisso, se disponibiliza para vivenciar de maneira extremamente potente tudo que sente e vive nessa busca. O fato de esta mulher ser uma mulher comum, ao contrário de todas as pessoas famosas e inacessíveis que ele tanto admirou, também me soa como algo muito belo, como se dissesse um pouco do tanto que o amor não é algo transcendente, mas, pelo contrário, é algo do mundo…
LUIZ – E será que é isso que move ele? um “anônimo desconhecido”? Alguém capaz de conter um mistério que a gente precisa desvendar? Talvez o amor seja isso, igual da “Ideia de amor” do Agamben: a gente quer se aproximar e tocar o outro, mas sem revelar sua face, talvez tocar o outro para mantê-lo estranho e inacessível. Acho que o Sr. José até então não havia descoberto essa força: a burocracia, o mundo do “mesmo” era tudo que lhe era apresentado, e a partir do pequeno crime (quem há de negar que o amor é uma espécie de crime?) muitos outros seriam cometido. Acho que há também uma relação estreita com a morte, né? Você que leu o Intermitências da Morte consegue ver alguma ligação entre o amor e morte em ambas as obras?
LUISA – Olha… não sei se vejo uma relação entre o amor e a morte. Ou melhor: há, sim, uma relação entre as duas coisas na medida em que, indo além do que você disse, o amor não é só uma espécie de crime, mas uma espécie de morte, ainda que simbólica, já que morre o que éramos antes do encontro amoroso pra nascer uma outra coisa, que agora foi atravessada pelo amor (e é certo que essa outra coisa nasce apenas para, num próximo instante, morrer e ser outra… eterno devir). Mas, voltando, vejo talvez com mais clareza uma aproximação entre morte e afeto – e afeto aqui é (por incrível que pareça) mais do que amor. As mortes de Saramago são povoadas de afetos – intensidades, potências (mortes povoadas de vida?). Em As Intermitências da Morte, ninguém mais morre em Portugal. Até que a morte resolve voltar a matar, mas há esse sujeito que, mesmo depois de muitas investidas dela, cisma em não morrer. E a morte se aproxima deste sujeito, ela quer conhecê-lo e entender porque sempre acontece algo que não o deixa morrer. Este encontro é cheio de afetos – como devem ser todos os encontros… E é muito bonito, pois a aproximação dele e da morte, que deveria ser algo totalmente assombroso, é o que possibilita a vida e novas trocas afetivas…
LUIZ – Então, acho que chegamos nisso como semelhança e diferença: “E a morte se aproxima deste sujeito, ela quer conhecê-lo e entender porque sempre acontece algo que não o deixa morrer.” No caso de Todos os Nomes é a mulher que não permite que o Sr. José encontre-a simplesmente porque…o encontro não é importante, não faz nenhuma diferença encontrar ou não encontrar. A relação está toda na busca, no caminho, no trajeto, o encontro dos dois seria só mais um anti-clímax da burocracia da vida comum. É aí que está a questão, eu acho, diante da morte só é possível o encontro. A morte é este encontro do limite, da linha máxima que não pode ser transposta. A vida, ao contrário, não serve aos encontros, serve as buscas, aos trajetos, a errância – caminho de quem erra pelo mundo. Talvez o que mova a vida não seja o amor, mas como dissemos lá em cima “a ideia de amor”, aquilo que, na busca, mantém a vida desconhecida, o mistério. O afeto é um dos efeitos da vida: na morte encontra seu limite. E como entender a busca do Sr. José por essa “escuridão”, ao contrário da clareza da sua vida anterior?
LUISA – Vou tentar reformular um pouco a minha concepção do encontro: o encontro não é o ato ou o momento de encontrar, mas todo o caminho percorrido, todo esse entre, toda essa errância…. encontro como o encontro entre nossas intensidades e as intensidades do mundo. Concordo, então, que se o Sr. José simplesmente “encontrasse” a mulher, seria apenas a burocracia agindo outra vez. Mas ele a encontra (aí no sentido que disse anteriormente) mesmo sem “encontrar” com ela. Fica claro? Não é o encontro face-a-face, mas o encontro dos afetos que passam por ele vindos da própria ideia de encontrá-la, vindos da busca (linhas que se cruzam). E se é certo que a morte é a linha máxima que encerra a vida, não é por isso que não é possível ter vida na morte: para mim, as trocas que se estabelecem entre o homem que não morre e a morte são exatamente isso: a possibilidade de criar (e portanto afetar, ser afetado) mesmo diante da morte. Porque como toda linha, a linha da morte também pode ser dobrada. O mesmo no caso do Sr. José: quais as chances de encontrar a tal mulher, que ele nunca viu nem ouviu falar nem sequer sabe da existência dele? Ainda assim, há nele essa potência que leva a essa busca… A “escuridão” na qual ele entra por causa de sua busca poderia parecer absurda, já que antes havia clareza. Por que percorrer essa ideia maluca, se há a vida, calma, tranquila e acolhedora? Acho que essa é a maior lição que Sr. José nos dá: a de que a Vida não é essa vida da clareza, com v minúsculo, mas o caminho pela escuridão, que é onde podemos realmente inventar, criar e viver…
LUIZ – Acho que é exatamente isso: um lançar-se ao nada ou, como diz Nietzsche, dançar a beira do abismo. É interessante como Saramago precisa construir isso em todos os detalhes: as conversar com a senhora do rés do chão, aquele cemitério com o número das lápides trocadas, aquela noite dentro da escola, as conversas com ele próprio em casa, olhando pro teto. Tudo converge para a mesma coisa, uma busca do escuro. Sr. José perguntava: onde está meu escuro? E sua resposta era sempre: Preciso procurar. E só na procura ele acha. A cena final do livro – que não vou contar aqui – é isso. O encontro com a vida, com a coragem. Uma coragem da vida que abarca tudo mesmo que este tudo esteja nesta sombra, nesta escuridão. É por isso que Todos os Nomes pra mim junta o melhor de Saramago: a capacidade de olhar o mundo no que ele tem de ser violento contra os corpos – seja ele quais forem – ao mesmo tempo em que mostra uma coragem, um possibilidade de encantamento do mundo. E quando a gente encanta o mundo, nada fica igual: tudo já é outro.
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LUISA – Perfeito! Saramago nos mostra que a vida é possibilidade, é busca e criação. E talvez essa percepção também nos aproxime mais do que falávamos no começo, sobre o que é o amor pra ele.