Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares, conta a história de Marius, um sujeito que encontra perdida na rua a menina Hanna, portadora de Síndrome de Down – ou trissomia do 21, como trata o autor – com uma pequena caixa com uma série de instruções. Entre as poucas palavras que diz, Marius descobre de Hanna apenas uma coisa: ela está à procura de seu pai. Assim, Marius começa uma peregrinação até Berlim em busca do pai de Hanna e, no caminho, esbarra em diversos encontros inusitados fortemente marcados e marcantes de um período pós-guerra. Leia mais aqui!
Indicar a parte do corpo que dói. Marius pensou em como isto era difícil, não apenas para um deficiente mental, mas para todos os seres humanos, para todos os seres vivos – “indicar a parte do corpo que dói”.
as pernas acompanham a evolução técnica: está tudo mais rápido e as pernas não são excepção; e é por causa desta velocidade que os cartazes são indispensáveis, e bons cartazes, boas imagens, boas frases, são elas que obrigam a parar, a parar durante algum tempo, o tempo necessário para digerir o texto, a frase, mas talvez uma e outra necessitem de tempo igual, é por isso que procuramos imagens e frases que remetam para o cérebro e, dentro do cérebro, para essa parte onde a memória funciona; porque não podemos cometer o erro de dar imagens para os olhos e frases para o cérebro, temos de misturar tudo.
excitar a memória, às vezes também é isso – mostrar o que se está a passar no lado que não vemos. (…) a memória está mais ligada ao bom observador no espaço do que ao bom observador no tempo; (…) o ritmo do passo aumentou muito mas a imobilidade é que é importante. Não podemos observar enquanto fugimos.
A melhor maneira de reagir a um soco é outro soco, outras vezes é fingir que não se tem força para responder.
No fundo por vezes estamos vivos apenas para isto – aceitar o que vai acontecendo, e avançar.
era evidente para mim que, ser a língua nos faltasse um dia, se desaparecesse, se fosse arrancada como Hanna temia, faria aparecer em nós uma ânsia extrema e uma nostalgia não da fala correcta, bem pronunciada, mas muito mais do gosto, do sabor da comida, da satisfação fisiológica que a boca tira, ou rouba mesmo, de cada alimento.
o mais evidente, que saltava à vista como uma diminuição do homem, era que todos aqueles objetctos que o rodeavam estavam feitos para serem manipulados, para serem ligados, accionados, empurrados, suportados pelas mãos, unicamente. E tal deixava a sensação de que a espécie humana era desprovida de qualquer outro órgão ou membro – pés, pernas, tronco, cabeça – todas estas partes pareciam simplesmente cumprir a função de suportar as mãos, existiam para que as mãos estivessem no ar, abandonadas.
Estou rodeado de velhos – e, tal como na infância, esse pensamento fez-me sentir mais forte do que aquilo que me rodeava e logo a seguir mais fraco, bem mais fraco.
A sua boca ia tentando devorando aquilo a que os olhos tentavam dar forma e a sensação de tremor que aos poucos eu fui sentindo (e talvez, quem até, também os outros dois adultos presentes na sala) vinha da compreensão de que tudo, para ele – para aquele miúdo -, era alimento, não havia o menor instinto de conservação das formas.
Se apenas se protege os animais enquanto estão vivos – disse-nos o homem – comete-se um erro. (…) Temos que proteger os animais mortos, exibir animais mortos, e só assim defendemos o resto.
Só tem um olho para ver a cidade e é um olho normal; esta é, portanto, a minha situação existencial, se assim posso me exprimir – e riu-se. (…) Pois bem, o meu olho esquerdo serve-me para não ficar louco por causa do mundo e o olho direito para não ficar louco por causa do meu atelier. (…) É um olho religioso, é por ele que fujo. Você, se quer um conselho, tenha pelo menos uma parte do seu corpo um pouco afastada do mundo, senão não sobreviverá.
A rapidez com que se pega no próprio e se foge de um lugar onde a nossa vida está em risco, esta rapidez depende muito deste trabalho anterior, de esvaziar o espaço que está à nossa volta.
já experimentou pesar o dinheiro? Pesar mesmo: colocar umas notas numa balança e pesa-lo. Pois bem, eu já e posso informá-lo de que o seu peso é praticamente desprezível. E isso também já percebi há muito. A sua grande utilidade deve-se à sua leveza. A sua leveza impressiona. (…) Deixe-me dizer, parece uma invenção não humana. é mesmo isto. Sabe quanto pesa uma das nossas notas mais valiosas? Numa balança normal nem sequer se assinala a presença de alguma coisa. (…) é isso mesmo que eu penso: balanço entre ver o dinheiro como uma invenção diabólica ou divina, e não pelo uso que fazemos dele mas simplesmente pelo seu peso, pela matéria do que é feito.
O acaso, o que lhe acontecia, definia o seu caminho; como se o exterior mandasse nele, como se o seu destino estivesse não nele, mas em cada pessoa com quem cruzava. Para onde me levarem, eu vou.
Edição: Companhia das Letras, 2015