Em um dos textos mais importante de sua vida, Sigmund Freud descreveu a diferença entre luto e melancolia. Para o psicanalista austríaco, a grande diferença do luto está no objeto: enquanto no mundo moderno cada vez mais surgiam melancólicos, aqueles que sofrem sem saber exatamente pelo que sofrem, o luto se fazia por um caminho distinto e um recorte mais específico: o luto é um sentimento de perda quando realmente se perde algo ou alguém.
Então, enquanto a melancolia estaria difusa no tempo e poderia durar para sempre, o luto estaria determinado por uma série de fases que precisam ser ultrapassadas até que o sujeito se veja novamente pronto para viver a vida.. E é justamente sobre essas fases que o romance Teus lábios só não me disseram adeus, de Fábio Martins, constrói suas bases poéticas.

Teus lábios só não me disseram adeus é um romance do escritor Fábio Luiz de Melo Martins, ou apenas Fábio Martins, nascido em São Vicente e que se diz “observador da alma e dos relacionamentos humanos”. Fábio, que atualmente vive em Belo Horizonte, atua como contista, cronista e professor de língua portuguesa e literatura.
Em seu romance, entramos em contato com a personagem Rafaela, uma mulher de 43 anos que possui uma vida aparentemente plena, tanto pessoalmente quanto profissionalmente, quando, de repente, precisa enfrentar a recente perda do pai.
Diante da morte daquele que era sua maior referência, ela se junta à sua mãe para, diante da casa vazia deixada pela perda repentina, poderem superar essa fase entre lembranças, memórias, histórias e, claro, alguns impasses causados pela dor.
O principal desses impasses está em um presente deixado pelo pai para Rafaela: uma caixa guardada em um escritório que sua mãe recusa a abrir. Uma ainda não quer revisitar o passado enquanto a outra quer viver apenas de seu passado. Enquanto aguarda o tempo de dor da mãe, Rafaela mergulha na sua própria trajetória de construção e reconstrução da vida diante da ausência daquele que a pessoa que lhe formou enquanto sujeito.
Teus lábios só não me disseram adeus é dividido em três partes que estruturam de maneira bastante clara e evidente essas três fases do luto que Rafaela vai precisar superar: a morte, o luto e o reencontro.
No capítulo da morte, o que temos é a necessidade primeira de entender o fim da vida como um momento definitivo, de que seu pai não vai abrir a porta a qualquer momento e adentrar a casa para preencher o vazio deixado. A dificuldade de aceitação e o medo do peso da perda, fazem com que Rafaela precise repetir a todo instante uma palavra que lhe toma a mente: MORTO.
Nesta parte, vamos conhecer a primeira infância e a adolescência de Rafaela que viu o pai entrar e sair de casa com missões que até então ela não entendia. Acontece que ele era um grande militante de esquerda que ajudava a livrar pessoas presas pela ditadura. Se levantando contra o poder instituído, Walter, seu pai, acabou trazendo para casa também uma ideia de justiça, cidadania e luta por um mundo melhor, assim como sua mãe, advogada que vivia em defesa sempre daqueles que mais precisavam.
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A segunda parte do romance está focada no luto propriamente dito. O sentimento de perda profundo, as bebedeiras durante a noite, os pesadelos constantes em que se acordava gritando de medo. Para além disso, a necessidade urgente de construir a vida e de aprender a lidar com essa dor. Neste momento, o romance me lembrou a pequena obra da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, Notas sobre o Luto, em que a autora precisa também superar a morte do seu pai, neste caso, uma perda que veio durante a pandemia de Covid. Em determinado momento, a nigeriana retrata o luto como um processo de aprendizado. Cruel, sim, mas um aprendizado:
O LUTO É UMA FORMA CRUEL de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos.
Fábio Martins reflete sobre as mesmas questões quando Rafaela precisa enfrentar isso que ele chama de uma “presença ausente”, a saudade:
Meu luto começou no Dia de Finados, após espalharmos as cinzas do meu pai a partir de uma trilha na Serra do Curral. Voltamos para a casa que por anos tinha sido o lar de nós três, mas agora era só de minha mãe. Fiquei pensando no que é o luto. É a presença da ausência, uma espécie de rompimento amoroso só que com a certeza de que o ser amado nunca voltará.

Porém, aos poucos esse luto começa a se transformar no desejo de não apenas sofrer, mas de celebrar a outrora presença da pessoa amada em sua vida, ainda que se precise viver um paradoxo entre um tempo que passa e uma vida que parece paralisada no momento da perda de nosso ente querido:
É estranho o luto. A vida continua, mas ao mesmo tempo parece parada. Algumas pessoas nos entendem, outras simplesmente não nos dão direito a sentir o luto, a viver o luto, a namorar com o luto. Querem porque querem acelerar um processo que é pessoal, intransferível, impossível de ser medido e colocado em palavras.
Neste caminho de cura, Rafaela encontra sua saída: entender que “o tamanho da ausência é o tamanho do amor”, de modo que reencontrar seu passado é também se projetar para o futuro. É entender que, diante do medo dos não ditos houve também muita coisa dita, ainda que tenha ficado esquecida durante alguns momentos:
Tenho medo de não ter dito todos os ‘eu te amo’ que gostaria, de não ter dito o quanto me orgulhava dele, de não ter dito tantas coisas. Fico sempre achando que bati portas demais, que fiz caras feias demais, que fiquei chateada demais com os silêncios dele, que só fui compreender muito tempo depois. E o que acontece quando você compreendeu? Passamos a nos entender melhor, acho que passei a respeitar a maneira como ele lidava com tudo.
Por fim, temos o reencontro, momento em que o presente deixado por seu pai é finalmente aberto por Rafaela e ela pode, novamente, ouvir a voz de seu pai ausente que não voltará mais.
Teus lábios só não me disseram adeus, de Fábio Martins, é um romance sobre entendimento da perda, mas mais que isso, um romance de compreensão de que é preciso viver não apesar da perda, mas com a perda, trazendo ela consigo, para que ela nos acolha e nos engrandeça. Porque, sem isso, somos só pessoas sem histórias, sem passado, sem memória. Só existe perda e luto porque se viveu. E muito.

