É fácil pensar em Ernest Hemingway como um homem de extremos. Veterano da Primeira Guerra Mundial, alcóolatra, conhecido por seu temperamento irascível, apaixonado por touradas e por marlins gigantescos, pelo boxe e pela caça, por mulheres – sobretudo as difíceis – e lembrado como a voz da Geração Perdida nos Estados Unidos, o escritor é conhecido por sua obra literária brilhante – “Adeus às Armas”, “O Velho e o Mar”, “O Sol Também Se Levanta”, “Por Quem Os Sinos Dobram”, “As Neves do Kilimanjaro”, etc, etc, etc. Um homem que viveu como escreveu: em frases curtas, secas, rijas, mas com um subtexto emocional que nunca deixava de latejar.
E ainda assim, talvez o retrato mais fiel que se possa fazer dele, mais revelador que qualquer foto com uma espingarda ou uma máquina de escrever, é o de um homem cercado por gatos. Gatos de seis dedos.

Hemingway amava gatos. “Um gato tem honestidade emocional”, ele escreveu. “Os seres humanos, por uma razão ou outra, podem esconder seus sentimentos, mas um gato não.” Isso vindo de um homem que construiu sua obra sobre tudo aquilo que não era dito, tudo que vibrava sob a superfície. Não é à toa que escolheu viver com criaturas que não dissimulam. Os gatos, como as boas histórias, dizem a verdade à sua própria maneira. E, até hoje, eles tem lugar na casa do escritor.
A ilha, a casa, os mitos

Na ilha de Key West, no extremo sul da Flórida, está a antiga casa de Hemingway. A Ernest Hemingway Home and Museum é hoje um museu, A properiedade é grande, arejada, rodeada por varandas e sombras. Foi onde ele escreveu alguns de seus livros mais conhecidos — Por Quem os Sinos Dobram, As Neves do Kilimanjaro, Ter e Não Ter — e onde viveu com sua segunda esposa, Pauline Pfeiffer, antes que tudo desmoronasse, como sempre acontecia em sua vida conjugal. Hoje, turistas caminham pelos cômodos com ar reverente, tiram fotos da poltrona preferida do escritor, do banheiro com azulejos importados, do quarto onde dormia com as janelas abertas para o calor úmido da ilha.
Entretanto, fora sua função de memorial ao escritor, a principal ocupação da instituição é outra: a de santuário felino. O que há de mais memorável ali, além da cama com dossel e da velha Remington, são os quase sessenta gatos que vivem soltos pelo terreno, como se pertencessem ao lugar tanto quanto as paredes em estuque espanhol. A maioria deles tem um dedo à mais; polidáctilos. Eles não estão ali por acaso: São os descendentes diretos de Snow White (Branca de Neve), a gata branca de seis dedos que um capitão de navio presenteou a Hemingway na década de 1930. O museu os cuida com rigor: vacinação anual, vermífugos, antipulgas, tratamento contra ácaros. Os animais têm abrigo, alimentação regular e liberdade total para circular pelo terreno. E todos têm nomes — nomes de celebridades, seguindo o tema tradicional adotado pelo próprio Hemingway ao batizar os seus felinos. Betty Grable, Humphrey Bogart, Truman Capote. Os guias turísticos os chamam por nome, e eles, às vezes, respondem. Quando querem.
Os gatos são as estrelas da Hemingway House. Eles estão por toda parte: nas varandas, nos telhados, entre as colunas. Alguns dormem em espreguiçadeiras, outros parecem guardar a biblioteca. Um ou outro nos observa com aquela expressão típica dos felinos – um misto de desprezo aristocrático e curiosidade moderada. No site da Hemingway House, a aba “Nossos Gatos” é a primeira a aparecer. Na seção “Contato”, está dito que todos estão convidados à enviar e-mails “para receber atualizações sobre o bem-estar dos gatos e fazer perguntas à respeito deles”. A instituição tem, inclusive, uma parceria com a Revolution, marca de medicamentos anti-parasitários que fornece seu remédio para todos os moradores da Casa.
Seis dedos, várias histórias
Gatos normalmente tem cinco dedos nas patas da frente e quatro nas patas de trás. A polidactilia é uma anomalia genética simples: um gene dominante que provoca o desenvolvimento de dedos extras, geralmente nas patas dianteiras, às vezes também nas traseiras. Essa condição não é uma raça particular, aparecendo em gatos de todos os tipos e cores. A mutação é comum entre gatos costeiros, especialmente entre aqueles ligados a portos e navios. Os marinheiros acreditavam que gatos com dedos a mais eram mais ágeis, melhores caçadores de ratos, e, portanto, amuletos de boa sorte. Foi um desses marinheiros que trouxe Snow White até Hemingway — um presente a um homem que entendia o mar melhor do que quase todos os literatos que dele escreveram.
Hoje, todos os gatos do museu carregam esse gene, ainda que nem todos apresentem a característica fisicamente. Ainda assim, todos tem a possibilidade de terem filhos com essa característica – pois gatos “normais” que possuem o gene tem igual probabilidade de terem filhotes com dedos extras. A única certeza é que muitos são descendentes daquela primeira gata branca que, em silêncio, deu início à dinastia felina de Hemingway – e mesmo os que não tem ligação comprovada provavelmente carregam alguma relação: afinal, como coloca o site, Key West é uma ilha pequena, e acredita-se que todos os gatos nela sejam parentes.
O homem, o mito e os gatos
A relação entre escritores e gatos, aliás, é longa. Baudelaire, Colette, Borges, T.S. Eliot, Murakami. Mas no caso de Hemingway, essa relação é quase simbiótica. Não é exagero dizer que os gatos o compreendiam melhor que muita gente. Em um mundo onde o autor se sentia frequentemente deslocado — entre os salões literários, os bares de Paris, os campos de guerra —, talvez fosse apenas entre seus gatos que ele encontrasse algo parecido com uma convivência verdadeira. Uma troca silenciosa. Um entendimento mútuo.
Há algo de profundamente hemingwayano nos gatos que habitam a casa. Não apenas pelo gosto do autor por esses animais, mas pelo que representam. São criaturas discretas, autossuficientes, essencialmente solitárias. Não fazem questão de agradar. Há quem os considere arrogantes — mas talvez sejam apenas honestos. Como a escrita de Hemingway. Os gatos também encarnam uma contradição que o próprio autor personificava: a união de ternura e ferocidade. São animais capazes de profunda afetuosidade, mas que jamais se submetem. Como Santiago, o velho pescador de O Velho e o Mar, que enfrenta a morte com dignidade, os gatos vivem em silêncio, atentos, estoicos. Em sua independência está o que há de mais autêntico — e também mais poético.
Hemingway morreu em 1961, de forma trágica, por sua própria mão. Estava doente, deprimido, alcoólatra, e já não conseguia escrever como antes. A lenda do homem que enfrentava touros, pescava tubarões e escrevia com a frieza de um bisturi sucumbiu ao peso de si mesma. Ainda assim, há algo de profundamente comovente no fato de que, em sua vida, ele tenha cultivado gatos. Criaturas suaves. Peludas. Pequenas. Quase contraditórias com a imagem que construiu de si mesmo — e talvez por isso mesmo tão reveladoras.
Ao cuidar de seus gatos, Hemingway cuidava de uma parte de si que poucos conheciam. A parte afetuosa. A que se emocionava. A que desejava companhia sem precisar pedir por ela. Os gatos não exigem palavras, e isso deve ter sido um alívio para um homem que passou a vida inteira perseguindo a frase perfeita.
Epílogo de seis dedos
Nos Estados Unidos, existe um termo para os gatos polidáctilos: “Hemingway cats”. É uma das poucas ocasiões em que o nome de um escritor vira nome de uma mutação. E ainda que isso possa parecer uma trivialidade, é, na verdade, uma homenagem justa. O legado de Hemingway não está apenas nas bibliotecas, mas também nos telhados de sua antiga casa em Key West, sob o sol, sob o vento, entre os miados e as sombras.

Passear pela casa de Hemingway hoje é um exercício curioso de arqueologia emocional. A presença do escritor está em tudo — nos móveis, nos manuscritos, nas fotografias em preto e branco. Mas talvez esteja mais presente nos próprios gatos. Eles são a manifestação contínua de algo que resiste ao tempo: um elo entre o homem e o lugar, entre a literatura e a vida. Os gatos não estão apenas ali: eles pertencem ali. São parte do enredo. Eles vivem como ele gostaria de ter vivido — livres, seguros, num lugar bonito. Dormem onde bem entendem, ignoram regras, escalam o que querem. E todos os dias, lembram aos visitantes que, mesmo um escritor de frases duras e lutas existenciais, pode ter deixado para o mundo um presente inesperado: uma linhagem de gatos com dedos a mais. Gatos que, como seus livros, ainda vivem. E que, como ele, nunca foram exatamente como os outros.
E nesse ponto, a casa transforma-se em mais do que um museu. É um relicário animado. A vida ali não foi embalsamada, como acontece em tantas residências-museu de escritores. Ela continua a se mover, a miar, a dormir ao sol. Há algo de mágico — ou talvez de simplesmente vivo — em visitar um espaço onde o passado não foi congelado, mas domesticado. A cada filhote que nasce com um dedo a mais, é como se a história se reescrevesse, com pequenas variações, mas o mesmo espírito.
Aqui estão alguns dos gatos da casa de Hemingway:







