Jogos Vorazes, série literária que marcou o gênero distópico por Suzanne Collins, cativou leitores ao redor do mundo com sua narrativa brilhante de sobrevivência, autoritarismo e rebelião. Além de sua história emocionante e sua imensa carga política, a série trata do profundo impacto do trauma e de diversos transtornos e desafios relacionados à saúde mental, trazendo uma representação crua de personagens lidando com transtorno de estresse pós-traumático, depressão, vícios e abuso sexual. Através da lente da ficção distópica, Collins explora as consequências psicológicas da violência e da guerra em indivíduos e na sociedade.
Jogos Vorazes trata de vários aspectos de trauma e saúde mental, examinando a representação de TEPT em Vitoriosos como Katniss Everdeen e Annie Cresta, de depressão em personagens como a mãe de Katniss, de vícios através de personagens como Haymitch Abernathy e os Morfináceos, e de abuso sexual e terror psicológico através de Finnick Odair. A série de Collins reflete o trauma sofrido por pessoas em zonas de guerra na realidade, e teve grande influência na formação da discussão sobre Guerra, violência, trauma e autoritarismo na literatura Young Adult.
Do que trata Jogos Vorazes?
A série de livros — e, posteriormente, de filmes – se passa num futuro próximo, em que desastres naturais tiveram consequências severas para a humanidade. Em Panem, um país onde antes havia estado os Estados Unidos, a população está dividida em 12 Distritos, cada um responsável por uma atividade econômica, alimentando a Capital, a cidade onde vivem os mais ricos, e de onde Panem é governada pelo tirânico Presidente Coriolanus Snow. A sociedade se organiza em torno dos Jogos Vorazes, uma competição televisionada anual em que duas crianças entre 12 e 18 anos, um rapaz e uma moça, são sorteados em cada distrito para competirem em uma arena até a morte. O único vencedor é banhado em riquezas e fama, e o Distrito de onde ele é proveniente recebe comida extra por um ano – algo muito valioso no mundo de Panem, onde quase todos os distritos passam fome.
A história é centrada em Katniss Everdeen, que se voluntaria para os Jogos no lugar de sua irmã Prim, que foi sorteada com apenas 12 anos. Katniss se torna um símbolo revolucionário em Panem ao conseguir forçar os Idealizadores de Jogos a permitirem que dois vencedores – ela e seu parceiro de Distrito, Peeta – saiam vivos da arena, ameaçando um duplo suicídio e uma edição sem vencedores caso eles se recusem. Para se livrar da ameaça representada por Katniss, o presidente Snow a coloca nos Jogos uma segunda vez, em uma edição especial em que todos os competidores são antigos Vitoriosos. Lá, Katniss conhece uma série de aliados – Finnick Odair, do Distrito 4, Johanna Mason, do 7, Beete Latier, do 3, e outros. O que ela não sabe é que forças políticas maiores que ela estão se movimentando, e que um plano rebelde já está em andamento. Katniss, com alguns vencedores, é retirada da Arena e levada para o secreto Distrito 13, quartel-general da rebelião, para se tornar a face da Revolução contra a capital. Uma guerra se inicia, e o presidente Snow é eventualmente deposto, com um governo revolucionário sendo instituído e pondo fim nos Jogos Vorazes; para isso, porém, Katniss sofre muitas perdas pessoais, incluindo familiares e amigos.
A gênesis do trauma em Jogos Vorazes
O universo de Jogos Vorazes é alicerçado em trauma sistêmico. Os Distritos enfrentam pobreza, miséria e opressão extremas sob o governo da Capital, com pessoas enfrentando fome constante, falta de recursos e oportunidades muito limitadas. Esse ambiente hostil cria a fundação do estresse crônico e dos transtornos psicológicos de personagens como a protagonista Katniss Everdeen.
A Colheita anual em si mesma já é um evento imensamente traumático. As crianças e adolescentes do distrito vivem aterrorizadas de serem selecionadas como tributos – sendo as famílias mais pobres sempre as mais passíveis de passaram por isso, tendo seus nomes colocados no sorteio mais vezes em troca de comida – e os pais e familiares de crianças em idade de competir, também, causando ansiedade e todo tipo de estresse emocional. Esse sistema perpétua um ciclo de medo e incapacidade debilitante de se preservar, contribuindo para danos psicológicos generalizados nos distritos.
Os Jogos Vorazes forçam tributos jovens a confrontar a violência e a morte, roubando sua inocência. Participantes como Katniss e Peeta são jogados em situações que desafiam seus valores morais e os forçam a tomar decisões de vida ou morte. Simultaneamente, todos os cidadãos de Panem são forçados a assistir, ano após ano, esse show de violência – que é de visualização mandatória -, muitas vezes vendo pessoas que conhecem como competidores, ou conscientes de que, no ano seguinte, eles ou seus familiares e amigos podem ser os próximos. Essa exposição prematura e constante à brutalidade tem impactos duradouros no bem-estar mental dessas comunidades, e molda a visão de mundo dos cidadãos de Panem.
A saga mostra violência física e psicológica, colocando sua natureza interconectada em evidência, bem como seu impacto de longa duração, e enfatizando a forma como o trauma pode ser ainda pior e mais debilitante do que as feridas corporais. A violência física na arena inclui combates brutais, ferimentos e mortes, com tributos enfrentando ameaças imediatas à sua sobrevivência, aguentando dor e sofrimento, mas a violência psicológica infligida pela Capital se estende para além dos Jogos, afetando tributos e cidadãos normais e deixando cicatrizes invisíveis, mas profundas, nos personagens, que sofrem de ansiedade, depressão e TEPT muito tempo após terem saído de perigo físico. Os ferimentos se curam, mas o impacto psicológico da violência persiste.
A Arena como uma metáfora para a guerra
A Arena nos Jogos Vorazes serve como uma metáfora para a guerra, exibindo o impacto psicológico, as complexidades morais e as consequências duradouras de conflitos naqueles que participam deles. Os tributos lidam com um microcosmo do combate no mundo real, onde instintos de sobrevivência entram em conflito com dilemas éticos. Esse ambiente controlado espelha as duras realidades de um campo de batalha, forçando os participantes a confrontarem sua humanidade diante da violência. O design das arenas inflige estresse psicológico severo nos tributos. Os jogadores lidam com as implicações éticas de matar para sobreviver, num paralelo com os questionamentos morais que muitos soldados encontram em situações de conflito.
Katniss tem dificuldade de balancear seu senso de autopreservação com sua empatia por alguns de seus colegas tributos. Ela fica chocada quando Finnick, no Segundo Massacre Quaternário, faz piada das mortes de outros tributos – com as famosas falas, entregues com risadas, ‘Acho que não estamos mais todos de mãos dadas” e “Cada vez que [o canhão que representa a morte de um tributo] dispara, é música para meus ouvidos. Eu não ligo para nenhum deles” – os comentários se provam falsos, é claro, quando Finnick salva a vida de Peeta, chora com a morte de Mags e se preocupa quando ouve os gritos de Johanna.
Ainda no tópico de guerra, Jogos Vorazes representa de maneira vívida o impacto do trauma no desenvolvimento de jovens e adolescentes. Katniss Everdeen e Peeta Mellark têm 16 e 17 anos quando vão para os Jogos. Haymitch, Annie e Johanna tinham 16, e Finnick apenas 14. Todos os personagens enfrentam inúmeras situações de vida ou morte enquanto ainda muito jovens, e isso transforma suas identidades e molda sua visão de mundo. Isso serve como um paralelo com as experiências de soldados em situações de conflito declarado, muitos dos quais são menores de idade e abaixo da idade militar oficial, ou ainda muito jovens, ainda que já maiores de 18 anos.
A vida pessoal de Suzanne Collins tem enorme influência em sua escrita, e isso fica evidente na série. Seu pai foi um oficial de carreira da Força Aérea Americana e historiador militar, além de veterano da Guerra do Vietnã. Isso teve um papel crucial em determinar a perspectiva de Collins sobre guerra e suas consequências, trazendo autenticidade para suas narrativas e incutindo em seu trabalho temas sombrios e “adultos” – como autoritarismo, genocídio, guerra biológica, propaganda, combate brutal e suas consequências, e o impacto psicológico da violência – apesar de ter como púbico alvo uma audiência de adolescentes e jovens adultos.
Os jogos deixam marcas nos sobreviventes, físicas e emocionais, que servem como lembretes das experiências na arena, simbolizando o impacto persistente da guerra em indivíduos e sociedades. A série enfatiza que a violência, mesmo quando considerada necessária – como durante a Revolução – traz consigo consequências profundas que moldam os sobreviventes por muito tempo depois do fim de um conflito.
O impacto psicológico da violência
O envolvimento dos personagens nos Jogos e, mais tarde, na invasão da Capital – aqui é válido mencionar, acima de tudo, a “guerra sob o chão” – cria uma excelente oportunidade para mostrar o impacto psicológico imediato da violência nos personagens da saga. Tributos experimentam sintomas clássicos de trauma, incluindo pesadelos, flashbacks, paralisia, medo persistente e respostas nervosas aumentadas; a constante exposição a ameaças os mantém estressados e extremamente alerta. Muitos personagens – Katniss e Finnick no ataque dos Gaios Tagarelas são o mais memorável exemplo – lidam com experiências dissociativas, despersonalização e desrealização enquanto lidam com os horrores que acabaram de presenciar.
Os efeitos do trauma a longo prazo variam entre sobreviventes, mas um fio comum é a sensação de que algo vital foi irreversivelmente destruído. Quase todos os vitoriosos que conhecemos – Katniss, Peeta, Finnick, Annie, Haymitch e até mesmo Johanna – exibem sinais de TEPT, cada um de maneira diferente. Além disso, o trauma não termina na coroação do Vitorioso: os vencedores são forçados a lidar com mais trauma e abuso na Capital pelo resto de suas vidas, sofrendo ameaças, vendo seus amigos e família serem mortos, sendo vítimas de tráfico sexual e muitas vezes desenvolvendo vícios e transtornos psicológicos, além de serem obrigados a atuarem como mentores em todas as edições subsequentes dos Jogos Vorazes pelo resto de suas vidas – Mags, a vitoriosa mais velha descrita por Collins, atua como mentora faz mais de sessenta anos.
Sentimentos de culpa perseguem vários dos vitoriosos, que tem que lidar com o fardo moral e emocional de terem sobrevivido quando outros morreram; isso é especialmente verdadeiro após a Revolução, quando Katniss se culpa pela morte de vários de seus amigos.
Os personagens empregam diversas maneiras de lidar com seu trauma. Distrações e ocupações diversas – Katniss caça e colhe, Peeta pinta – servem de alívio temporário, mas num geral não são suficientes. Muitos, como Haymitch e o álcool e os Morfináceos e, depois, Johanna com as drogas, se voltam para o abuso de substâncias como um mecanismo mal adaptativo. Em momentos de crise, muitos personagens, como Finnick e, depois, Katniss, utilizam técnicas de distração para se manter sãos. Peeta e Annie dependem muito do apoio de amigos e familiares para lidar com seu trauma, com Finnick ajudando Katniss e Peeta a desenvolver técnicas que funcionem para o caso especial deles, como ele fez com Annie. A série põe especial ênfase na ideia de que a cura não tem tanta relação com consertar o que foi quebrado, e reside mais em passar pelo luto do que foi perdido e buscar construir algo novo com o que sobrou.
O papel da Capital na perpetuação do trauma
A Capital tem um papel fundamental na perpetuação do trauma entre seus cidadãos. Através de opressão sistêmica, manipulação midiática e dessensibilização para a violência, a Capital mantém controle sobre a população de Panem. O governo emprega uma estratégia calculada de isolamento e crises manufaturadas para manter seus cidadãos sem poder. Ao reter recursos essenciais e criminalizar a autossuficiência, o sistema cria um estado de carestia e medo perpétuos. Essa fuga deliberada serve como uma forma de controle, lembrando a todos de sua dependência da benevolência da Capital.
A Capital também utiliza a mídia como uma ponderosa ferramenta de controle. Os próprios Jogos Vorazes servem não apenas como um espetáculo, mas é ao redor deles que toda a sociedade é estruturada, com os Jogos acontecendo em julho, o tour da vitória em janeiro, e um espaço de menos de seis meses entre eventos relacionados aos Jogos, sempre mantendo-os na mente das pessoas. Os Vitoriosos são as celebridades de Panem, os estilistas famosos são os que vestem os tributos – sobretudo os vitoriosos. A cultura da Capital é inteiramente formada pelos Jogos Vorazes.
Os cidadãos dos Distritos, por sua vez, são forçados a testemunhar o abuso e assassinato de seus pares sem qualquer consequência, e com o endosso do Estado. Esse entretenimento horrível cria padrões de autopreservação na mente da audiência, que é constantemente lembrada de que o próximo poderia ser você. Através dos Jogos anuais, a Capital normaliza a violência contra crianças na forma de entretenimento, gerando uma dessensibilização para a violência que serve para manter o controle social, com cidadãos se tornando acostumados com violência extrema, e tem menor probabilidade de apresentar resistência. A justaposição entre a opulenta Capital e os empobrecidos distritos enfatiza ainda mais a natureza brutal desse sistema.
Além de manter os Distritos em um estado constante e perpétuo de ansiedade e estresse e utilizar o medo como uma a arma para suprimir rebeliões e manter o status quo, a Capital também emprega sofisticadas técnicas de propaganda para manipular a percepção pública através de narrativas midiáticas cuidadosamente construídas e um fluxo de informação controlado. O governo distorce a realidade e prejudicando a habilidade de seus cidadãos de confiar em suas próprias experiências – uma forma de gaslighting coletivo que contribui para confusão e instabilidade psicológicas generalizadas dentre a população.
Trauma Geracional em Panem
O trauma de Panem é geracional. As experiências traumáticas dos pais – que também cresceram com os Jogos Vorazes, que também perderam amigos e familiares, que também vivem com a pobreza e a instabilidade constantes, e que tem medo de verem seus filhos como os próximos competidores dos Jogos – tem imenso impacto nos filhos, como representado de maneira brilhante na história de depressão da mãe de Katniss após a morte de seu marido, e na forma como esses eventos moldaram a visão do mundo de Katniss e lhe atribuíram novas – e inapropriadas – responsabilidades. Esse padrão se repete entre distritos, com os medos e estratégias de sobrevivência dos pais influenciando nos comportamentos e experiências de seus filhos. Todos os Distritos carregam o peso do trauma coletivo de pobreza e opressão, com os Jogos servindo como uma experiência comum de medo e perda, afetando comunidades inteiras ano após ano.
O trauma generalizado influencia as normas sociais, os relacionamentos e a saúde mental das gerações subsequentes – Katniss menciona, por exemplo, que muitas garotas dos distritos se prostituem para ajudar a alimentar suas famílias, que boa parte das pessoas começam a trabalhar imensamente cedo nos empregos pré-determinados de seus Distritos, e que há aqueles, como ela própria e Gale, que cometem crimes, como contrabando, para garantir sua subsistência. Muitos se recusam a ter filhos – como a própria Katniss diz que fará, antes da rebelião – para não ter que vê-los sendo enviados para a Arena. De maneira similar, há um padrão de casamentos entre pessoas muito jovens – a ideia de Peeta e Katniss sendo casados aos dezesseis anos não é questionada por ninguém nenhuma vez sequer -, algo comum em situações de guerra no mundo real, onde um senso de urgência causa muitos adolescentes e jovens adultos a se casarem muito cedo.
Apesar da natureza do trauma intergeracional em Panem, personagens como Katniss, Peeta e Annie lutam para quebrar esse ciclo. Seu esforço para criar um futuro melhor para seus próprios filhos representa uma tentativa consciente de curar e prevenir a transmissão do trauma para as próximas gerações. O simbolismo do filho de Annie e Finnick no último capítulo do livro, bem como dos filhos de Katniss e Peeta no epílogo, é de esperança para uma próxima geração menos traumatizada. Isso fica particularmente claro na última fala do livro, em que Katniss, falando com sua filha bebê que acabou de acordar de um pesadelo, diz que ela também tem pesadelos, e que um dia explicará por que, mas que sua técnica favorita para voltar a dormir é jogar um jogo em que ela lista todas as coisas boas que ela já viu alguém fazer. O livro termina com Katniss dizendo que é um jogo que fica tedioso depois de um tempo, mas que há jogos muito piores de se jogar.
Recuperação e cura no universo de Jogos Vorazes
Um dos principais temas da saga é a difícil jornada de recuperação para os personagens que passaram por trauma severo. Sistemas de suporte tem um papel crucial nesse processo – Finnick é provavelmente o melhor representante dessa categoria, já que ele atua como único suporte, em momentos diferentes, para Katniss (durante o período em que Peeta estava preso como refém na Capital), para Peeta (durante a batalha que ficou informalmente conhecida como os, 76º Jogos Vorazes, durante a qual Peeta estava em luta constante contra seu telesequestro) e para Annie (sua namorada, e posteriormente esposa, para quem Finnick atua como único apoio em tempo praticamente integral), mas Katniss e Peeta também constantemente servem de apoio um para o outro, bem como Prim em muitas ocasiões tenta ajudar sua irmã, e Katniss busca servir como suporte para Johanna durante sua recuperação psicológica após as torturas da Capital.
Terapia e tratamentos com medicamentos, embora muito limitados no universo distópico de Panem, são frequentemente mostrados como essenciais para a recuperação. Katniss, Peeta, Johanna, Finnick e, presumivelmente, Annie, todos passam por algum tipo de terapia durante A Esperança. Todos também utilizam medicamentos – a maioria de ação calmante, e Johanna chega ao ponto de ficar viciada. A série coloca em evidência a importância de tratamento mental apropriado para sobreviventes de trauma, desenhando paralelos com a experiência de veteranos e sobreviventes de conflitos no mundo real.
Apesar desses esforços, quase todos os personagens continuam a lidar com desafios permanentes, demonstrando o caráter duradouro e por vezes não totalmente reversível de experiências de trauma extremo. Katniss nunca para de ter pesadelos; os flashbacks de Peeta continuam dez ou quinze anos depois de seu telesequestro; Annie ainda tem todos os sintomas de um TEPT complexo anos depois de seus Jogos; Haymitch nunca deixa de beber.
Relacionamentos, trauma e recuperação
Na saga, relacionamentos – familiares, platônicos e românticos – tem um papel crucial tanto no trauma quanto na recuperação. Prim, Peeta e amigos como Finnick e Gale servem para ajudar na manutenção de certo nível de estabilidade emocional para Katniss, mas as mortes de Prim e Finnick, o telesequestro de Peeta, as decisões tomadas por Gale e outras coisas do general são igualmente terríveis para essa mesma estabilidade emocional. De maneira semelhante, a morte do pai de Katniss acaba com o emocional de sua mãe, e a depressão de sua mãe transforma negativamente a vida e a perspectiva de Katniss de um dia para o outro, criando estresse e responsabilidade extras para ela quando ela tem apenas onze anos. Annie é representada como uma das únicas pessoas que conhecem a situação de Finnick e agem como rede de apoio para ele, mas quando ela é posta em perigo – e sua condição mental como um todo – causam desafios psicológicos tão intensos que Finnick mal consegue ficar acordado e sóbrio por mais de algumas horas, e passa aquelas em que está acordado chorando. Essas dinâmicas complexas ilustram como relacionamentos podem tanto aliviar quanto exacerbar o trauma.
A série explora a maneira como relacionamentos são testados, enfraquecidos e reforçados sob circunstâncias extremas. A amizade de Katniss e Gale evolui de maneiras inesperadas na medida em que eles navegam os desafios – físicos, emocionais e ideológicos – de seu mundo distópico. Relacionamentos formados na arena, como as alianças de Katniss com Rue, Peeta, Finnick, Johanna e mesmo Beete, mostram a maneira como conexão pode trazer conforto e suporte mesmo em eventos extremamente traumáticos, e como relacionamentos se formam e evoluem com rapidez em circunstâncias extremas.
Relacionamentos românticos também muitas vezes servem como mecanismos de controle de trauma no universo de Jogos Vorazes. O caso mais explícito, sem dúvida, é o de Annie e Finnick, que já são um casal estabelecido por todo o tempo em que os conhecemos, e que tem um ao outro como rede de apoio primária para seus imensos traumas. O relacionamento de Katniss e Peeta, mais complicado – Katniss muitas vezes é interpretada (inclusive, admitidamente, pela própria Jeniffer Lawrence) como assexual e arromântica, e demonstra pouco interesse no aspecto romântico de seus relacionamentos ao longo da história – também resulta, eventualmente, em um relacionamento romântico de longa data (ao que tudo indica, ela e Peeta estão casados no epílogo. Além disso, eles têm dois filhos juntos). Esse relacionamento, apesar de suas muitas complicações, é uma fonte de suporte mútuo e cura para os dois. Suas experiências conjuntas criam um laço único que ajuda ambos a navegar seu trauma pós-Jogos e rebelião.
Autenticidade psicológica em Jogos Vorazes
A série consegue, na maior parte do tempo, manter muito bem um equilíbrio delicado entre dramaticidade narrativa e realismo psicológico, especialmente levando em consideração a faixa-etária do público alvo. Os personagens enfrentam circunstâncias extraordinárias, mas suas respostas emocionais e dificuldades mentais se mantêm muito ligadas à realidade. Essa abordagem permite que leitores e audiências se conectem com os personagens em um nível pessoal ao mesmo tempo que se apaixonam por uma narrativa cheia de reviravoltas.
A autenticidade psicológica em Jogos Vorazes contribuiu de maneira significativa para o impacto da saga nas audiências e nos críticos. Muitos jovens – e, mais recentemente, na medida em que a série entra cada vez mais num cânone literário mais adulto, e passa a ser compreendida na atualidade como uma saga apropriada para adolescentes, mas eminentemente adulta em seus temas e discussões, e tratada como tal, adultos também – se veem refletidos nos problemas dos personagens. Essa representação auxiliou consideravelmente na criação de discussões mais abertas sobre esses tópicos entre audiências.
Veteranos de guerra já traçaram muitos paralelos entre suas experiências e aquelas representadas em Jogos Vorazes. Muitos acham a representação de TEPT na série autêntica e realista, e os desafios enfrentados pelos personagens com seus sintomas – especialmente flashbacks, hipervigilância, dissociação e pesadelos – são identificáveis para aqueles que enfrentaram desafios semelhantes após retornar de combate.
Profissionais de saúde mental elogiaram a série por sua representação correta de sintomas variados de TEPT, capturando a natureza complexa do trauma e de seus efeitos em sobreviventes, mostrando, através de Katniss, a batalha constante contra o TEPT e as dificuldades de se reajustar à vida civil.
Sobreviventes de trauma muitas vezes encontram consolo nas experiências de personagens ficcionais, e a exploração da série de temas como culpa de sobrevivente, anestesiamento emocional e a dificuldade formar relacionamentos ressoa com muitos que passaram por situações similares.
Katniss Everdeen: um estudo de caso em trauma
Jogos Vorazes é muito elogiada como uma reflexão realista e bem-pensada de eventos do mundo real, explorando os efeitos do autoritarismo em indivíduos e na sociedade. A narrativa distópica de Suzanne Collins faz paralelos com conflitos modernos e discussões atuais sobre opressão, desigualdade, autoritarismo, manipulação midiática, comodificação do sofrimento e violência enquanto espetáculo.
Uma das representações mais vívidas do impacto da violência e do trauma na psique humana está, certamente, em Katniss Everdeen, a protagonista da trilogia, que claramente é vítima de transtorno de estresse pós-traumático – TEPT. Suas experiências e mambas as arenas, sua experiência testemunhando mores e participando de atos de imensa violência, e seu envolvimento com o movimento revolucionário e a guerra na Capital, além do imenso custo pessoal – as mortes de amigos e familiares ao longo dos anos – a deixam para lidar com trauma psicológico severo.
O trauma de Katniss começa muito antes dos Jogos Vorazes. Aos onze anos, ela perde o pai em uma explosão de minas, e como sua mãe entra em uma depressão severa e debilitante, ela se torna a única provedora de sua família e com a função de cuidar de sua irmã mais nova, Prim. Essas dificuldades já no começo de sua vida, combinadas com a fome constante e o governo opressivo da Capital, criaram uma base de estresse psicológico já no começo. Os Jogos Vorazes amplificam exponencialmente o trauma de Katniss na medida em que ela enfrente situações de vida ou morte, testemunha mortes brutais e é forçada a matar. Os horrores da arena, incluindo as alucinações por veneno de teleguiadas e a morte agoniante de sua amiga, a pequena Rue, deixam cicatrizes psicológicas profundas e a forçam a confrontar sua compreensão de si mesma e seus relacionamentos com outros. Mais tarde, a destruição de seu distrito e a perda de entes queridos pioram seus sintomas de TEPT severo.
Katniss exibe sintomas clássicos de TEPT, incluindo pesadelos recorrentes, flashbacks, comportamentos evasivos, medo persistente, paralisia emocional, dificuldade na manutenção de relacionamentos, reações aumentadas, hipervigilância, incapacidade de processar suas emoções, e eventos intercalados de profunda raiva com total desconexão com a realidade. A série mostra sua dificuldade em processar suas cicatrizes emocionais e em conseguir se reintegrar em sociedade e viver uma vida normal após os Jogos e, mais tarde, a revolução. A natureza de seu trauma é a mesma do trauma de pessoas envolvidas de alguma maneira em situações de conflito, na medida em que ele se manifesta através de repetidas ocasiões em que Katniss testemunha mortes e violência brutal, e enfrenta múltiplas situações em que corre risco de vida. Seu TEPT se manifesta de várias maneiras, incluindo reações dissociativas e um estado emocional permanentemente negativo, e a personagem é elogiada como um exemplo realista do impacto dessa desordem em sobreviventes de violência extrema.
A depressão da Sra. Everdeen
Desde o primeiro livro de Jogos Vorazes, o leitor é informado de que a mãe de Katniss passou por uma depressão severa após a morte de seu marido em uma explosão nas minas em que ele trabalhava. Sua doença tem um impacto imenso em sua família, quase levando a morte dela e de suas filhas pequenas. Katniss, então com doze anos, precisou arranjar comida e sustento para a casa sozinha nos meses em que sua mãe não saia da cama ou falava, além de ter tomado responsabilidade pela criação de sua irmã Primrose. Essa situação causa problemas na relação entre Katniss e sua mãe, que nunca são totalmente resolvidos, embora melhorem com o tempo.
Inicialmente, Katniss tem dificuldade em entender a condição de sua mãe. A medida que a história progride, as próprias experiências de Katniss com a depressão fazem com que ela tenha mais compreensão de seus efeitos debilitantes. Em determinado momento, sua mãe explicitamente fala de sua condição como uma doença. A série faz um excelente trabalho em lidar tanto com a realidade das dificuldades da Sra. Everdeen com sua doença, e o também válido ressentimento de Katniss pela parentificação sofrida quando ela ainda era muito jovem e, como sua mãe, também estava enlutada pela morte do pai.
O alcoolismo de Haymitch
Haymitch Abernathy, o único vitorioso vivo do Distrito 12 além de Katniss e Peeta, é alcoólatra. Sua condição o torna irritável, agressivo e, às vezes, ridículo. Entretanto, o vício de Haymitch vem não apenas do trauma sofrido ao longo de seus Jogos Vorazes – ele foi o vencedor do Segundo Massacre Quaternário, uma edição especial dos Jogos que acontece a cada 25 anos. Na edição de Haymitch, o dobro de tributos foram colhidos. Ele foi o único sobrevivente dentre 48 tributos – mas também do assassinato subsequente de toda a sua família – sua mãe e seu irmão mais novo, além de sua namorada – quando o presidente Snow considerou que a técnica utilizada por Haymitch para vencer foi um desafio. Após esses eventos, Haymitch atuou como o único mentor de quarenta e oito adolescentes e crianças ao longo de 25 anos de Jogos Vorazes, e viu todos, exceto Katniss e Peeta, morrerem.
Haymitch se voltou para a bebida como um mecanismo para lidar com seus traumas, utilizando-a para dissociar do presente e anestesiar o sofrimento de seu passado. Seu vício se tornou pior ao longo do tempo, levando a crises de abstinência severas durante períodos em que o álcool estava em falta – nessas ocasiões, ele chegou a beber álcool puro. Haymitch dorme por boa parte dos dias, desmaiado de tão bêbado, e sempre com uma faca na mão. Apesar de sua condição, ele ainda tem alguma semelhança de controle sobre sua dependência, concordando, durante os primeiros jogos, em ficar sóbrio o suficiente para ajudar Katniss e Peeta na arena. Em abstinência, Haymitch é violento, incoerente, e tem tendência a alucinar, demonstrando a severidade de seu vício.
É interessante ver que Collins não cura Haymitch de seu vício no fim da saga. Após a Revolução, ele continua a beber, mas parece ter melhorado um pouco: ele começa a criar gansos, e contribui para o livro de Katniss e Peeta com histórias de vitoriosos e tributos que conheceu em seus 25 anos como mentor.
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Wiress enlouquece na Arena
A genial Wiress, a vitoriosa dos 41º Jogos Vorazes, vinda do Distrito 3 e tributo no Terceiro Massacre Quaternário, passa por deterioração mental severa durante seu tempo na segunda arena de sua vida. Sua condição de instabilidade se torna evidente quando, após a tempestade de sangue, Wiress se torna incapaz de dizer qualquer coisa além de repetir as palavras “tick, tock”. Esse comportamento aparentemente sem sentido é, na verdade, uma pista crucial sobre o design da arena: Katniss eventualmente decifra a mensagem obsessiva e críptica de Wiress, percebendo que a arena funciona como um relógio com 12 sessões, cada uma trazendo um novo desastra em um ciclo repetitivo, de hora em hora. Ela é apelidada de “pancada” por Johanna, evidenciando sua reputação para a instabilidade mental já presente mesmo antes dos 75º Jogos Vorazes.
Annie Cresta, TEPTC e “loucura”
Annie Cresta, vitoriosa dos 70º Jogo Vorazes vinda do Distrito 4, passa por trauma severo durante seus jogos. Ela tem um colapso mental logo nos primeiros momentos, quando vê o tributo masculino de seu distrito ser decapitado. Annie passa o resto dos jogos em um estado de histeria, escondida, e só sobrevive em função da sorte: após alguns dias, a arena é alagada, e Annie, originária do distrito da pesca e do mar – e sendo, assim, a melhor nadadora – consegue se manter nadando por tempo suficiente para ultrapassar todos os outros tributos restantes, que morrem afogados. Annie passa horas nadando sem parar entre os cadáveres de outros tributos, e sobrevive pelo cansaço.
Esse evento tem um impacto mental mais severo do que a média em Annie, levando-a a desenvolver sintomas que parecem indicar um Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo, ou até mesmo algum tipo de psicose. Annie é vista por todos como mentalmente instável, e seu comportamento, que Katniss menciona ser estranho, inclui dissociar no meio de conversas, se sacudir, fechar os olhos, tampar as orelhas, encarar o vazio e rir em momentos aleatórios, é um motivo de preocupação. Finnick, seu marido, menciona que tem medo de Annie dizer algo que possa ser considerado traição contra a revolução sem entender o que está dizendo. A princípio, Katniss está sob a impressão de que Annie é louca – chegando a perguntar de Johanna, ao descobrir que Finnick tem um relacionamento com uma garota chamada Annie, se a Annie em questão é a mesma que ficou meio louca durante seus jogos – e essa parece ser a ideia geral que os Distritos e a Capital tem dela. Mais tarde, após conhecê-la pessoalmente, Katniss a descreve como estranha, mas não louca, e reconhece sua condição como instabilidade mental e fragilidade emocional, mas não como insanidade.
Finnick é a única pessoa que consegue acalmar Annie durante seus episódios. Ela tem pelo menos uma crise durante sua estadia no Distrito 13, e só consegue se acalmar após vários minutos em que Finnick a segura e fala algo em seu ouvido. Seu gatilho foi um comentário, feito por Johanna, sobre o período em que as duas, junto com Peeta, passaram como reféns, sendo torturadas na Capital.
A situação de Annie mostra os impactos psicológicos duradouros dos Jogos Vorazes em seus sobreviventes em sua versão mais severa, servindo como um excelente lembrete da crueldade da Capital e da gravidade das feridas psicológicas carregadas pelos Vitoriosos. Annie, ao contrário de Katniss, Finnick, Johanna e Haymitch, já parece ter sido uma jovem mais mentalmente vulnerável e frágil. Em um universo com tantos personagens já caracterizados desde o princípio como fortes e estoicos, Annie é uma representação de uma maioria menos preparada para lidar com os horrores da violência.
Finnick Odair: pedofilia, tráfico sexual e tortura psicológica.
A história de Finnick Odair, Vitorioso mais jovem da história, tendo vencido os 65º Jogos Vorazes com apenas 14 anos, revela uma sombria faceta de tráfico sexual na Capital. Sua história é particularmente trágica, pois Finnick foi um carreirista – isto é, um jovem treinado desde a infância para os Jogos, se voluntariando para participar ao atingir certa idade. A indústria de carreiristas, presente nos três distritos mais ricos – 1, 2 e 4 –, é responsável pela vastíssima maioria dos Vitoriosos dos Jogos, conseguindo mais subsídios e privilégios na medida em que seus jovens se tornam vencedores. Finnick é descrito como praticamente invencível – ele é excepcional com sua arma preferencial, o tridente, e tem força e energia para carregar um homem adulto nas costas por horas, como faz com Peeta durante o Segundo Massacre Quaternário.
Quando está no Distrito 13, Finnick é levado a gravar um vídeo, que será exposto para a Capital como parte de um plano de distração para tentar salvar os reféns mantidos por Snow, contando as histórias de sujeira e corrupção e os segredos de pessoas influentes na Capital que ele sabia. Todos esses segredos, ele conta, foram adquiridos ao longo de dez anos de prostituição forçada, pois o Presidente Snow é o líder de uma rede de prostituição de luxo de vencedores dos Jogos Vorazes, que ele vende para benefício próprio. Finnick, de acordo com ele próprio, não foi o único, mas foi o mais popular.
Logo após ganhar seus Jogos, Finnick – que era conhecido por sua beleza extrema, algo que o ajudou a ganhar seus jogos por torná-lo atraente para patrocinadores – é coagido pelo Presidente Snow a fazer sexo com adultos, sabendo que sua família será morta se ele se recusar. Esse abuso continua por anos, tornando Finnick essencialmente um acompanhante de luxo. Ele é descrito como o maior sex symbol de Panem, e “uma das pessoas mais sensuais do planeta”, e o estilista responsável pelas roupas da comitiva do Distrito 4 tem o costume de vesti-lo com o mínimo possível de roupas, pois “quanto mais Finnick eles puderem ver, melhor”. Como o público geral não pode ficar sabendo do que de fato ocorre com os vencedores, porém, Finnick é pintado como um playboy fútil que passa de affair para affair sem qualquer critério – Katniss, antes de saber da situação de Finnick, descreve suas “correntes de amantes” como sendo compostas por homens e mulheres, jovens ou velhos, bonitos ou feios, ricos ou muito ricos, e menciona que ele passa por pelo menos cinco pessoas em cada uma de suas viagens anuais para a Capital durante os Jogos Vorazes – para benefício próprio. Suas experiências com abuso sexual são degradantes e indutoras de ansiedade.
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Na realidade, Finnick está há anos em um relacionamento secreto em casa, no Distrito 4. Sua namorada é Annie Cresta, a vencedora mentalmente instável dos 70º Jogos Vorazes Annie e Mags Flannagan – a já idosa vencedora dos 11º Jogos Vorazes, que foi mentora de Finnick e quase como uma avó ou mãe para ele – são as pessoas que Snow ameaça, e Finnick menciona em seu vídeo que ele era um dos Vitoriosos mais vulneráveis a Snow, pois as pessoas com quem ele se importava – uma mulher idosa e uma garota extremamente traumatizada – eram muito vulneráveis elas próprias. Haymitch Abernathy as descreve como as únicas fraquezas de Finnick.
A devoção de Finnick à Annie é incondicional, apesar de sua reputação como louca por toda Panem. Seu amor e lealdade por ela permanecem mesmo à medida que o estado mental de Annie se deteriora. Em sua segunda passagem pela arena, durante os 75º Jogos Vorazes, Finnick, que é o favorito para vencer e consegue fugir muito bem da maior parte dos desafios físicos enfrentados durante os Jogos, é torturado psicologicamente, junto com Katniss, quando os Idealizadores de Jogos soltam Gaios Tagarelas – pássaros que copiam o som de vozes humanas após ouvi-los – na arena, reproduzindo a voz de Annie e dos familiares de Katniss sendo torturados e gritando por socorro. Apesar de ser avisado de que é pouco provável que as vozes sejam verdadeiras, e que muito provavelmente foram criadas por inteligência artificial, Finnick quebra, “se encolhendo no chão, apertando suas mãos contra seus ouvidos como se estivesse tentando esmagar seu crânio”. Quando os gritos param, Finnick se isola de seus amigos e passa um longo tempo em estado praticamente catatônico.
Essa ocasião é apenas o começo. Quando a rebelião começa e Finnick e Katniss escapam da arena, Annie é uma das pessoas sequestradas como reféns pela Capital, onde ela presumivelmente é torturada. Durante “A Esperança”, Finnick passa por imenso desespero, sem saber o que está acontecendo com ela. Ele se torna incapaz de ficar acordado por longos períodos de tempo, não consegue compreender o que lhe dizem sem que seja necessário repetir várias vezes, esquece das coisas, e passa a maior parte do tempo que está acordado chorando. Incapaz de focar em qualquer outra coisa, ele passa seus dias fazendo diferentes nós em um pedaço de barbante para controlar a ansiedade e se manter são. Apesar de sua condição mental, ele também ajuda Katniss a lidar com a situação, a ensinando a fazer nós.
Quando Annie finalmente é resgatada, Finnick se transforma em outra pessoa. Os dois imediatamente se casam, algo que até então tinha sido impossível devido à imagem que Finnick precisava manter na Capital. Na segunda metade de A Esperança, é possível ver de maneira mais próxima à posição de Finnick como principal apoio e cuidador de Annie. Ele é o único capaz de acalmar suas crises, e fica responsável por tudo relacionado a seu bem-estar. Sua dedicação à saúde mental dela também aparece em outros momentos, quando Finnick ajuda Katniss e Peeta a lidarem com suas próprias questões e transtornos através de técnicas que ele aplicava com ele. É Finnick que ensina para os dois a perguntar se algo é ou não é real quando Peeta está lidando com as consequências de seu telesequestro, dizendo que é o que Annie faz com ele. O filme, sobretudo, mostra Finnick como o principal guia e apoio de Peeta durante a missão na Capital, quando ele ainda está lidando com surtos de insanidade.
A exploração de Finnick na Capital serve como uma linha temática que discute questões sérias sobre dinâmicas de poder e consentimento, e foi elogiada como uma das poucas e mais bem-feitas e sensíveis representações de vítimas masculinas de abuso sexual. Finnick é fisicamente invencível em quase qualquer sentido, mas nem por isso consegue evitar sua situação. Ele é também uma brilhante representação de um cuidador para alguém com condições mentais severas. Acima de tudo, porém, a história de Finnick, como a de muitos carreiristas, é uma tragédia, pois representa o cidadão-modelo – um garoto que desde jovem treinou para os Jogos e se voluntariou – sofrendo imensamente nas mãos de um sistema no qual ele confiou.
O Telesequestro de Peeta
Peeta Mellark, parceiro de Distrito, amigo e eventual par romântico de Katniss, foi vítima de telesequestro, um método de condicionamento por medo desenvolvido pela Capital que combina tortura e lavagem cerebral. Peeta foi capturado, com Johanna, durante a fuga dos vitoriosos da arena no Segundo Massacre Quaternário. Na Capital, as memórias de Peeta a respeito de Katniss foram alteradas através da utilização de tortura combinada com sugestões, traumatizando-o de tal forma que ele passou a associar Katniss com uma ameaça. Isso tornou-o uma arma para ser utilizada contra ela, pois seus instintos de preservação o tornavam extremamente agressivo toda vez que ele a via.
Ao ser resgatado, Peeta tenta estrangular Katniss, demonstrando a severidade de sua condição – já que, até então, ele tinha sido tão apaixonado por ela que estava disposto a morrer para salvar sua vida. Esforços para reabilitá-lo incluíram tentar trazer suas memórias reais de volta através de conhecidos de infância e a utilização de morfináceo – o equivalente de Panem à morfina – para associar Katniss com memórias positivas novamente.
A recuperação de Peeta foi gradual, com momentos de claridade interligados com episódios de confusão e franca hostilidade e, embora tenha tido sucesso, não foi completa: no epílogo do livro, que se passa mais de uma década, talvez duas, após os eventos de A Esperança, Peeta ainda tem ocasiões, embora agora controladas, em que precisa se segurar para não ter uma recaída. O jogo “real ou não”, ensinado à Peeta e Katniss por Finnick, que o utilizava com Annie, se torna uma ferramente crucial para ajudar Peeta a distinguir memórias reais de memórias alteradas artificialmente pela capital. Apesar de seus desafios contínuos, Peeta eventualmente reconquista estabilidade mental suficiente para voltar a ter um relacionamento com Katniss, com quem ele tem dois filhos no futuro, apesar de seus flashbacks traumáticos nunca o deixarem.
Johanna Mason: Tortura, Drogas e Ódio
Johanna Mason, vencedora dos 71º Jogos Vorazes, vinda do Distrito 7, é conhecida por ser hostil e agressiva. Após os Gaios Tagarelas atacarem Katniss e Finnick com as vozes de seus amigos e família sendo torturados, Katniss pergunta a Johanna por que ela não foi afetada, ao que Johanna responde que já não há ninguém que ela ama para Snow usar contra ela. Isso indica que, ao contrário de Finnick, Johanna se negou a trabalhar para o presidente, e como Haymitch, pagou o preço com a morte de sua família e amigos. Johanna tem, naturalmente, imenso ódio de Snow. É interessante, também, ver que Johanna é representada como tendo uma tendência para se autossexualisar, ficando completamente nua publicamente em pelo menos duas ocasiões (para a imensa irritação de Katniss, que tem uma reação quase cômica à Johanna se despindo completamente diante dela, de Peeta e de Haymitch no meio de um elevador, e reclama quando vê Johanna “passando óleo nos peitos” em frente a todos os Vitoriosos e treinando completamente nua durante o período oficial de treinamento para o Segundo Massacre Quaternário). Com o contexto em mente, é possível interpretar a atitude de Johanna como um desafio próprio – ela pode fazer o que quiser sem correr o risco de ser prostituída, pois Snow não tem ninguém com quem a atingir.
Johanna, com Peeta e Annie, é feita refém e torturada pela Capital. Quando resgatada, ela está com a cabeça raspada e cheia de feridas. Johanna volta viciada em morfináceo, que ela procura conseguir em segredo na medida em que seus médicos começam a diminuir suas doses. Ela não é autorizada a ficar sozinha, e por isso Katniss se voluntaria para dividir um quarto com ela. Katniss acha estranho que Johanna nunca toma banho, se limpando com um pano molhado. Mais tarde, Katniss descobre – quando Johanna passa pelo teste do exército do Distrito 13 para ser liberada para se juntar à rebelião, e falha quando o quarto é inundado e ela tem um ataque de pânico – que durante seu tempo na Capital, Johanna foi torturada com choques elétricos na água, tornando-a mortalmente amedrontada de água.
O ódio de Johanna contra Snow e a Capital é extremo. Após a Rebelião, ela vota em favor de uma nova edição dos Jogos Vorazes usando crianças da Capital, e especificamente menciona a neta do presidente Snow. Não se sabe muito mais do que acontece com ela após esses eventos.
Os Morfináceos
Alguns vencedores do Distrito 6 são apresentados para o leitor não por seus nomes, mas simplesmente como Os Morfináceos. Esse apelido vem de seu vício em Morfináceo, que os deixou com aparências cadavéricas e doentes, e teve impacto também em sua vida financeira – algo excepcionalmente impressionante, pois os vitoriosos recebem mensalmente, de maneira vitalícia, um valor descrito por Katniss como suficiente para alimentar uma grande família por um ano, e são algumas das pessoas mais ricas de Panem. Apesar de sua relevância razoavelmente pequena para a narrativa, os Morfináceos são um bom exemplo do abuso de substâncias entre vitoriosos dos Jogos Vorazes, sem dúvida em função do trauma.
Tragédia com sensibilidade: a diferença entre Jogos Vorazes e a abordagem tradicional da mídia sobre violência.
Jogos Vorazes é elogiado sobretudo por sua sensibilidade e com a singularidade como escolhe mostrar a violência e o trauma de personagens, contrastando visivelmente com as representações típicas para as telas e os livros. Suzanne Collins e os diretores de todos os filmes escolheram enfatizar o caos e o pânico em cenas de luta e violência, fugindo do gore explícito – de maneira a tornar os livros e filmes apropriados para audiências mais jovens, e, ao mesmo tempo, não cair nas armadilhas da “pornografia do sofrimento” pela qual outras obras já foram muito criticadas. De maneira similar, A Esperança – livro e filme – é sempre elogiada por sua maneira de lidar com a narrativa sobre pedofilia e abuso sexual, deixando os horrores enfrentados por Finnick e por outros vitoriosos claros sem, em momento algum, trazer qualquer tipo de cena ou descrição explícita.
A decisão reflete a sensibilidade dos criadores para a hipocrisia de glorificar violência em uma história cujo objetivo principal é servir como crítica à exploração do sofrimento como commoditie pela mídia. Diferente de muitos filmes de ação e livros distópicos, que sanitizam a violência ou a utilizam quase que para excitar sua audiência, Jogos Vorazes apresenta a morte, a violência e o abuso sexual de maneira direta, sem se demorar em detalhes macabros, alinhando-se com a crítica da história a respeito da cultura de realities de TV e a dessensibilização social generalizada ao redor da violência. Evitando tanto a glorificação quanto a moralização pesada, a autora e os diretores encorajam sua audiência a refletir sobre suas próprias atitudes ao redor da violência televisionada, da sexualização exagerada e do entretenimento de maneira geral, sem se roubar de fazer seus pontos de maneira contundente, mas sem sensacionalismo.
Representação de Saúde Mental na Literatura Young Adult
A saga de Collins teve influência significativa na percepção pública de TEPT nos últimos anos ao aumentar a compreensão a respeito do transtorno e de seus efeitos. A série também encorajou discussões sobre saúde mental como um todo, e é especialmente elogiada por falar de saúde mental e trauma em homens – um tema ainda muito pouco explorado na ficção não-específica sobre o tema, especialmente no que diz respeito a abuso sexual -, ajudando na quebra de estigmas sobre o tema.
A representação de trauma, violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes, em mídia voltada para um público que também inclui adolescentes, é um assunto que levanta uma série de questionamentos éticos. Equilibrar realismo com sensibilidade é crucial, e a falha fatal de muitos livros, filmes e programas de TV – títulos como Euforia, que foi muito polêmica exatamente por isso nos últimos anos, vêm à mente – é a transformação desses temas em exploração. Representações tem a capacidade de educar, mas também de potencialmente prejudicar audiências jovens, e fetichizar o trauma de crianças e adolescentes. A discussão é especialmente complexa no que diz respeito à televisão e ao cinema – pois escalar atores menores de idade para papéis com uma carga emocional tão pesada é geralmente visto com maus olhos tanto pela audiência quanto por profissionais de saúde, mas a utilização de atores que pareçam muito mais velhos que seus personagens também pode ajudar a normalizar, relativizar e diminuir a seriedade de certos temas.
Discussões apropriadas para a faixa etária do público são essenciais, garantindo que o conteúdo apresentado seja adequado. A falta de cuidado nesse sentido é hoje um assunto extremamente polêmico no mercado editorial e no mundo de discurso de mídia de maneira geral, com discussões sobre a inclusão de temas cada vez mais pesados e cenas cada vez mais explícitas em programas de TV adolescentes, sobre o desaparecimento da mídia tween, e sobre a inclusão cada vez mais comum, incentivada em grande parte pela comunidade do booktok, de conteúdo sexual explícito na literatura Jovem Adulta – que até muito recentemente era considerada, e por muitos ainda é, um espaço que deveria se manter livre de sexo explícito.
Nesse sentido, Jogos Vorazes é universalmente elogiada como um exemplo de série de livros e franquia de filmes que consegue manter esse equilíbrio delicado com maestria, lidando com temas complexos e adultos num nível que mantém a narrativa perfeitamente adequada para adultos sem, no entanto, ser explícita, fetichista ou sensacionalista, considerando a parcela adolescente de sua audiência, e navegando com muito cuidado as considerações éticas de representar trauma de jovens para jovens de maneira responsável.
Um clássico do século XXI
Jogos Vorazes teve uma influência cultural imensa desde seu nascimento, e já é considerado um clássico moderno. Seu ressurgimento como um livro compreendido cada vez mais como “sério” – em oposição à sua reputação inicial como literatura adolescente da mesma linha de Crepúsculo e Divergente, influenciada erroneamente sobretudo pela decisão infeliz do marketing da franquia de filmes de utilizar o potencial triângulo amoroso entre Katniss, Peeta e Gale como estratégia de vendas principal nos anos 2010 – cimenta cada vez mais essa influência e essa noção. Através de representações vívidas de personagens lidando com TEPT, depressão e outras doenças psicológicas, a série ilumina os muitos efeitos da violência e da opressão. Essa narrativa não apenas entretém, mas também serve como uma ferramenta ponderosa de conscientização, especialmente entre adolescentes e jovens adultos, ao tratar de maneira explícita e séria de temas complexos em um contexto dramático atraente, iniciando conversas e ajudando a diminuir estigmas.
O legado de Jogos Vorazes se estende para além das páginas e telas, deixando marcas reais e duradouras no discurso cultural mais amplo sobre política, justiça social, autoritarismo e, é claro, saúde mental. Seu impacto na percepção pública de TEPT e outras condições relacionadas ao trauma, sobretudo proveniente de situações de conflito, é significativo. O sucesso da série e sua posição no cânone literário e cultural do século XXI demonstram o poder da narrativa ficcional para moldar atitudes sociais e encorajar mudanças positivas.