O medo pode residir no inesperado do sonho. Nas verdades ocultas nos signos de um cenário que vemos apenas entre sombras e por trás das cortinas. Nas palavras podem morar mundos. E são as sensações de mistério e quase impotência diante das verdades ocultas da existência humana que encontramos ao ler o sonho do bordel-museu, escrito pelo poeta Charles Baudelaire, e abordado no livro A Folie Baudelaire, de Roberto Calasso. Neste livro, o autor italiano analisa o sonho de Baudelaire e a edição lançada em 2012 pela Companhia das Letras traz provavelmente a única tradução disponível em português do sonho. Pouco se conhece sobre este sonho que Baudelaire teria escrito à mão, em um registro veloz, para não perder o frescor das últimas imagens que viu ao acordar. Por isso, nesta matéria, como comemoração do Halloween, você poderá lê-lo.
Mas antes de conhecê-lo é necessário saber que Baudelaire transcreveu este sonho numa carta para Asselineau, um amigo que, posteriormente, cuidaria de reunir seus papéis. No dia 13 de março de 1856, numa quinta-feira, Baudelaire é acordado de um sonho pelo arrastar dos móveis de Jeanne, a cortesã com quem mantinha um relacionamento. Por que é válido conhecê-lo? O sonho, na leitura de Roberto Calasso, irá revelar muito do próprio contexto que Baudelaire vivenciava na época. E o mais curioso é constatar, enquanto leitor de ambos, que o sonho revela muito mais do autor francês que existe em nosso imaginário.
Há vários pontos que podem ser vistos no capítulo O sonho do bordel-museu que Roberto Calasso desenvolve em seu livro. Mas preferi abordar apenas alguns deles e, principalmente, deixar aqui o sonho de Baudelaire para ser lido, um ótimo achado para repensar o grotesco e o estranho que conseguem ser poéticos também. Depois do sonho transcrito, há uma breve exposição do que Calasso interpretou dele e como podemos entendê-lo.
“Eram (no meu sonho) 2 ou 3 horas da manhã, e eu passeava sozinho pelas ruas. Encontro Castille, que tinha, creio, várias incumbências a cumprir, e eu lhe digo que o acompanharei e aproveitarei a carruagem para executar um encargo pessoal. Então, tomamos uma carruagem. Eu considerava meu dever oferecer à dona de uma grande casa de prostituição um livro meu que acabava de sair. Ao olhar meu livro, que eu trazia na mão, aconteceu de ser um livro obsceno, o que me explicou a necessidade de oferecê-lo a essa mulher. Ademais, em minha mente, essa necessidade era no fundo um pretexto, uma oportunidade para trepar, já que estava ali, com uma das moças da casa, e isso implica que, sem a necessidade de oferecer o livro, eu não ousaria ir a semelhante casa. Não digo nada de tudo isso a Castille, mando a carruagem parar à porta daquela casa e deixo Castille na carruagem, prometendo a mim mesmo não fazê-lo esperar muito. Logo depois de tocar e entrar, percebo que meu pau pende da abertura desabotoada da calça, e julgo indecente me apresentar assim, mesmo num lugar daqueles. Além disso, ao sentir os pés muito molhados, percebo que tenho os pés nus, e que os meti numa poça úmida na base da escada. Bah! – digo a mim mesmo -, vou lavá-los antes de trepar, e antes de sair da casa. Subo. A partir desse momento, o livro não aparece mais.
Encontro-me em vastas galerias, comunicantes entre si – mal iluminadas -, de aspecto triste e decadente, como os velhos cafés, os antigos gabinetes de leitura, ou as casas de jogo vagabundas. As moças, espalhadas por essas vastas galerias, conversam com uns homens, entre os quais vejo alguns colegiais. Sinto-me muito triste e muito intimidado; temo que vejam meus pés. Olho para estes e percebo que um traz um sapato. Pouco depois, percebo que ambos estão calçados.
O que me impressiona é que as paredes dessas vastas galerias estão ornadas de desenhos de todo tipo – emoldurados. Nem todos são obscenos. Há até desenhos de arquitetura e figuras egípcias. Como me sinto cada vez mais intimidado, e não ouso abordar uma moça, divirto-me em examinar minuciosamente todos os desenhos.
Numa parte recuada de uma dessas galerias, encontro uma série muito singular. Em meio a uma multidão de pequenas molduras, vejo desenhos, miniaturas, provas fotográficas. Representam pássaros coloridos com plumagens muito brilhantes, e cujo olho é vivo. Às vezes, há somente metades de pássaros. Às vezes representam imagens de seres estranhos, monstruosos, quase amorfos, como aerólitos. No canto de cada desenho, há uma anotação. – Tal moça, de tal idade…, deu à luz este feto em tal ano – e outras anotações do gênero.
Vem-me a reflexão de que esse tipo de desenho não é nem um pouco feito para inspirar ideias de amor.
Outra reflexão é esta: Realmente só existe no mundo um jornal, e é Le Siècle, que possa ser suficientemente estúpido para abrir uma casa de prostituição e para instalar ali, ao mesmo tempo, uma espécie de museu médico. De fato, penso de repente, foi Le Siècle que financiou esta especulação de bordel, e o museu médico se explica por sua mania de progresso, de ciência, de difusão das luzes. Então reflito que a estupidez e a tolice modernas têm sua utilidade misteriosa, e que muitas vezes, por uma mecânica espiritual, aquilo que foi feito para o mal se transforma em bem.
Admiro em mim mesmo a justeza de meu espírito filosófico.
Mas, entre todos aqueles seres, há um que viveu. É um monstro nascido na casa, e que se mantém eternamente sobre um pedestal. Embora vivo, faz parte do museu. Não é feio. Seu aspecto é até gracioso, muito moreno, de uma cor oriental. Há nele muito rosa e muito verde. Está agachado, mas numa posição esquisita e contorcida. Além disso, há algo negrusco que faz várias voltas em torno dele e de seus membros, como uma grande serpente. Pergunto-lhe o que é aquilo, e ele me diz que é um apêndice monstruoso que parte de sua cabeça, algo elástico como borracha, e tão comprido, tão comprido, que se ele enrolasse na cabeça como se fossem cabelos, o peso seria muito grande e absolutamente impossível de aguentar, e que por isso é obrigado a enrolá-lo ao redor dos membros, o que, aliás, faz um efeito mais bonito. Converso longamente com o monstro. Ele me informa de seus tédios e de seus pesares. Já faz muitos anos que é obrigado a permanecer naquela sala, sobre aquele pedestal, para a curiosidade do público. Mas seu principal aborrecimento é a hora da ceia. Como é um ser vivo, é obrigado a cear com as moças do estabelecimento, a caminhar cambaleando, com seu apêndice de borracha, até a sala da ceia, onde precisa mantê-lo enrolado em torno de si ou instalá-lo como uma pilha de cordas sobre uma cadeira, porque, se o deixasse arrastar-se pelo chão, isso faria sua cabeça tombar para trás. Além disso, é obrigado, pequeno e atarracado como é, a comer ao lado de uma moça alta e bem-feita. De resto, me dá todas essas explicações sem amargura. Não ouso tocá-lo, mas me interesso por ele.
Nesse momento (isto já não é sonho), minha mulher faz barulho com um móvel em seu quarto, o que me acorda. Acordo exausto, prostrado, com as costas, as pernas e os flancos moídos. Presumo que estava dormindo na posição contorcida do monstro”.
A interpretação de Roberto Calasso para o sonho
Primeiro, a leitura do sonho, quase um conto, deixa uma sensação densa quando terminado, como se estivéssemos contorcidos na cama igual a Baudelaire. Para entendê-lo, Roberto Calasso irá apontar algumas interpretações para os elementos encontrados no sonho. Há uma insegurança, por parte de Baudelaire, em adentrar no bordel com os pés descalços, o que indicaria uma fragilidade de sua exposição enquanto autor. Parece que ele deseja, no sonho, entregar a uma prostituta a obra Histórias extraordinárias, de Poe, a qual ele mesmo traduziu à época. Há três elementos que Calasso aponta serem de suma importância, e na própria leitura do sonho, se mostram urgentes: Baudelaire entra no bordel com o genital à mostra, com o “dever” de entregar um livro que, nas palavras dele, “aconteceu de ser um livro obsceno”; o segundo elemento é seus pés descalços, que Baudelaire se sente envergonhado por expor – mais do que o órgão sexual. Os pés descalços trazem uma obscenidade maior: Baudelaire tem vergonha de existir e de levar o seu livro para o bordel e, ao entrar no recinto, não sente que sua presença seja digna. E o terceiro elemento será a presença do monstro.
A questão colocada por Calasso, na sequência, é concluir que não se trata da obra de Poe traduzida, mas sim As Flores do Mal, que Baudelaire leva para o bordel. Numa casa de prostituição, onde não existe o pudor e tudo é permitido, Baudelaire se sente envergonhado por introduzir a obscenidade ao levar o seu livro. Irônico, não? Antes mesmo de ter concluído sua obra, o sonho já parecia indicar o interesse do autor pela temática. Mas indica também a complexidade em assumi-la, afinal, Baudelaire sentia o peso que seu livro tinha em suas mãos no sonho. E o curioso é que As Flores do Mal foi publicado posteriormente e condenado na época justamente por “obscenidade”.
Além disso, para Calasso, Baudelaire se sente exposto, e há até mesmo o receio de que seja interpretado como um mero exibicionista. Os pés aparecem nus, Baudelaire vê e deseja pelos sapatos que surgem no sonho, o que mostra a oscilação do sujeito na modernidade: Baudelaire mantém a dúvida sobre a sua criação, mas deseja apresentá-la sem deixar de encontrar o peso de uma possível crítica feroz à sua obra. E esta obra parece ser mais obscena, para Baudelaire, do que um bordel.
Eu acrescento à interpretação de Calasso que as paredes têm imagens que alternam entre a obscuridade e quase um registro médico da mesma forma que existe uma interferência da ciência enquanto progresso no século XIX. Aos poucos o ideário de progresso passa a mostrar que há um caminho tortuoso e até mesmo sombrio e excludente, mesmo com uma herança de esclarecimento das Luzes. É o que Baudelaire presencia, este submundo no qual prostitutas e poetas são recusados por um contexto que pede o “progresso”. E neste bordel, a verdade fica exposta nas paredes, as imagens de fetos estão lá para serem lembradas das inúmeras perdas dessas mulheres que encontram apenas um caminho tortuoso pela frente.
O artista se sente vulnerável, tal qual Baudelaire com seus pés nus, no cenário onde tudo se mescla em nuances muito difíceis de serem diferenciadas: há a mistura entre a figura do poeta e do monstro, as imagens na parede, a obscenidade no bordel e no gesto de Baudelaire.
Por isso, identifico no sonho-conto uma grande representação do cenário da modernidade. O poeta se depara com o monstro porque nele reside o encanto daquele que encontra a essencialidade do mundo pelas palavras. O sonho fala a Baudelaire por enigmas que ele mesmo busca quando escreve. E isso não é fácil de carregar, é tão obsceno quanto andar descalço para os críticos e até mesmo ao público geral. É obsceno porque ocasiona o incômodo por ter algo diante de você, na palavra escrita, que possui um significado, mas está oculto aos seus olhos. E mesmo assim, o significado está pulsando nas palavras. É quase um sabor deixado na boca.
Baudelaire se identifica como monstro, primeiramente, porque nele está o ar do ser curioso e esquisito que o artista ganha ao preservar sua singularidade na massa. O artista se sente também numa exposição constante porque encontra a oposição do outro e ainda parece dever a ele uma investigação sobre o mundo. Como aliar os dois? É isso o que Baudelaire procura no monstro. Como Calasso diz, o autor estaria vendo a si mesmo. Ou acrescentando um ponto à conclusão dele, Baudelaire está identificando as várias complexidades ao ser um escritor. Ele teme pela obscenidade, ousadia e efeitos de suas palavras no texto, mas consegue ver o peso que carrega e a dignidade em ser um artista.
A tradução e a primeira análise do conto foram encontrados no livro A Folie Baudelaire, de Roberto Calasso, editora Companhia das Letras, 2012.
Publicado no Literatortura 30/10/2014